Em the body snatcher a escuridão é total, se há filme em que a descida ao hades é de tal forma tão terrifica e tão vertiginosa é este; em nome do progresso, o conto de stevenson analisa o facto macabro de que a evolução da medicina e o conhecimento da anatomia humana passou, obrigatoriamente, pela dissecação de cadáveres, a morte como via sine qua non para a vida, ponto de partida para o que wise executa com mestria, é esse mergulho tão negro quanto o carvão e tão assustador quanto as casas assombradas mais assustadoras; na verdade, em body snatcher assistimos a uma simbiose de almas - "tu e eu temos dois corpos... sim, tipos de corpos muito diferentes... mas estamos mais próximos do que se estivéssemos na mesma pele, pois salvei essa sua pele uma vez e não te vais esquecer disso” diz gray a dada altura a macfarlane -, o passado que assombra e tolda o presente, é coisa que determina a acção, a tal descida vertiginosa ao hades, a perversão progressiva da alma, a sua completa escuridão que tem o seu pico naquele final tão aterrador e negro; e depois, que eu saiba, não há outro filme em que o frankenstein mata o drácula...
| 1964, Lilith, Robert Rossen |
há em lilith um dos maiores gritos cinematográficos por redenção, contido e reprimido durante o filme todo até ao momento final em que é expressado e suplicado; na verdade, toda a narrativa de lilith é sobre os fantasmas reprimidos de bruce, expelhados em lilith, mulher oposta mas também "gémea" do seu fantasma, a mãe, a perda irrecuperável que o assombra lá no âmago da sua alma, é, portanto, ela o veículo para o libertar, lilith, a doente bipolar, tão pura quanto perversa que "caiu" após a morte do irmão, a doente que apenas quer ser irmã de todos, que o seduz e o enlouquece e assim o guia para o limite onde se encontra ou a destruição ou a salvação.
"Será uma almeia?... às primeiras horas azuis
Destruir-se-á ela como as flores defuntas...
Diante da esplêndida vastidão em que se sente
Respirar a cidade largamente florescente!
É belo de mais! De mais! Mas é necessário
- Para a Pescadora e a Canção do Corsário,
E também porque as últimas máscaras contaram
Ainda com as festas nocturnas no mar puro!
Julho de 1872
A. R."
(Rimbaud)
| 1991, Avstriyskoe pole, Andrei Chernykh |
a procura da esperança (e da felicidade e do amor e dum sentido na vida) num mundo alienado e fragmentado; ambiguidade narrativa no tempo e no espaço; magnético e imersivo
“Saímos, com efeito, de uma evolução natural, mas desde que ingressamos no mundo da cultura, as nossas relações com a natureza tornaram-se mediatizadas, misturadas com o 'ruído' ideológico. É porque nos afastamos da natureza que queremos reencontrá-la. Entretanto, não podemos reencontrar a unidade perdida, nem um 'saber reconciliado'. O pensamento humano é algo singular, bizarro, no Univerno; ele não reflete o real, ele o traduz, não reflete o mundo, faz uma representação dele. Não podemos pôr fim a essa alienação, o nosso estranhamento com essa natureza, que é contudo nossa mãe/madrasta. É preciso romper com a visão sobrenatural e insular do homem, mas não podemos romper com nossa situação peninsular e biocultural.”
Edgar Morin
| 1971, Emitaï, Ousmane Sembène |
(o sangue dos "impuros")
“Why did Africa let Europe cart away millions of Africa's souls from the continent to the four corners of the wind? How could Europe lord it over a continent ten times its size? Why does needy Africa continue to let its wealth meet the needs of those outside its borders and then follow behind with hands outstretched for a loan of the very wealth it let go? How did we arrive at this, that the best leader is the one that knows how to beg for a share of what he has already given away at the price of a broken tool? Where is the future of Africa?”
Ngũgĩ wa Thiong'o, 'Wizard of the Crow'
(o amor é a verdadeira força da natureza para além dos tempos)
| 2023, La bête, Bertrand Bonello |
o último bonello, além de ser daqueles filmes que precisa de ser revisto para se entender melhor, é uma imersão experimental por um universo lynchiano somado a laivos weerasethakulianos e resnaisnianos; daquilo que me ficou e depreendi das quase duas horas e meia que, diga-se, passam a voar, foi a tentativa de dissolver a barreira da morte como interrupção das emoções ou dos sentimentos no ser humano; três épocas, três versões das mesmas duas pessoas, sempre interligadas por esse amor intemporal, interrompido, quase que proibido, sempre acompanhado pelo mensageiro da morte, o pombo; se entramos num mundo místico, onde as vidas passadas são recuperadas para entender (ou tentar) os sentimentos presentes, vamos depois chegar ao pós-humanismo e à ameaça da ia onde a morte assume outro sentido, mais vasto, mais destruidor que a própria morte em si; no final fica a dúvida se o amor sobreviverá também a isso.
"MEMÓRIA
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão
Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão."
Carlos Drummond de Andrade
| 2015, Kishibe no tabi, Kiyoshi Kurosawa |
o sobrenatural de kiyoshi é aqui transcendido na procura da eternidade, o perdão como busca imperativa para alcançar essa eternidade; no entanto, há em rumo à outra margem uma tranquilidade pristina associada não só à morte como à busca pela redenção nessa vida para além da morte; belíssimo.
"SABEDORIA I, III
Que dizes, viajante, de estações, países?
Colheste ao menos tédio, já que está maduro,
Tu, que vejo a fumar charutos infelizes,
Projectando uma sombra absurda contra o muro?
Também o olhar está morto desde as aventuras,
Tens sempre a mesma cara e teu luto é igual:
Como através dos mastros se vislumbra a lua,
Como o antigo mar sob o mais jovem sol,
Ou como um cemitério de túmulos recentes.
Mas fala-nos, vá lá, de histórias pressentidas,
Dessas desilusões choradas plas correntes,
Dos nojos como insípidos recém-nascidos.
Fala da luz de gás, das mulheres, do infinito
Horror do mal, do feio em todos os caminhos
E fala-nos do Amor e também da Política
Com o sangue desonrado em mãos sujas de tinta.
E sobretudo não te esqueças de ti mesmo,
Arrastando a fraqueza e a simplicidade
Em lugares onde há lutas e amores, a esmo,
De maneira tão triste e louca, na verdade!
Foi já bem castigada essa inocência grave?
Que achas? É duro o homem; e a mulher? E os choros,
Quem os bebeu? E que alma capaz de os contar
Consola isso a que podes chamar tuas dores?
Ah, os outros, ah, tu! Crendo em vãos lisonjeios,
Tu que sonhavas (e era também demasiado)
Com uma qualquer morte suave e ligeira!
Ah, tu, que espécie de anjo sempre amedrontado!
Mas que intenções, que planos? Terás energia
Ou o choro destemperou esse teu coração?
A julgar pela casca, é uma árvore macia
E os teus ares não parecem de vencedor, não.
Tão desastrado ainda! e com a agravante inútil
De seres cada vez mais um sonolento idílico
A fitar pla janela o céu sempre tão estúpido
Sob o astuto olhar do diabo do meio-dia.
Sempre o mesmo na tua extrema decadência!
Ah! — Mas no teu lugar, e assumindo as culpas,
Um ser sensato quer impor outra cadência
Com o risco de alarmar um pouco os transeuntes.
Não terás, vasculhando os recantos da alma,
Um vício pra mostrar, qual sabre à luz do dia,
Algum vício risonho, descarado, que arda
E vibre, dardejante, sob o céu carmim?
Um ou mais? Se os tiveres, será melhor! E parte
Prà guerra e briga a torto e a direito, sem
Escolher ninguém e enverga a indolente máscara
Do ódio insaciado, mas farto também…
Não devemos ser tansos neste alegre mundo
Onde a felicidade não é saborosa
Se nela não vibrar algo perverso, imundo,
E quem não quer ser tanso tem de ser maldoso.
- Sabedoria humana, eu ligo a outras coisas
E, de entre esse passado de que descrevias
O tédio, em conselhos ainda mais penosos,
Só consigo lembrar-me, hoje, do mal que fiz.
Em todos os estranhos passos desta vida,
Dos lugares e dos tempos, ou também dos meus
«Azares», de mim, dos outros, da estrada seguida,
Sempre retive apenas a graça de Deus.
Se me sinto punido, é porque o devo ser.
O homem e a mulher não estão aqui em vão.
Mas espero que um dia possa conhecer
O perdão e a paz que aguardam os cristãos.
É bom não sermos tansos neste mundo efémero,
Mas pra que o não sejamos na eternidade,
O que é mais necessário que reine e governe
Nunca é a maldade, mas sim a bondade."
Paul Verlaine
"O perdão é um catalisador que cria a ambiência necessária para uma nova partida, para um reinício."
Martin Luther King
| 2023, Eureka, Lisandro Alonso |
historicidade e misticismo dos povos indígenas ameríndios olhado sobre o estigma das suas comunidades; a narrativa tripartida serve os seus propósitos criando as pontes necessárias ao objecto analisado; soberbo.
“Qual é a sua estrada, homem? - a estrada do místico, a estrada do louco, a estrada do arco-íris, a estrada dos peixes, qualquer estrada… Há sempre uma estrada em qualquer lugar, para qualquer pessoa, em qualquer circunstância. Como, onde, por quê?”
Jack Kerouac
| 2023, All of us strangers, Andrew Haigh |
(a morte fica-vos tão bem)
"POÉTICA
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando."
Vinicius de Moraes
| 2022, Unrueh, Cyril Schäublin |
os relógios (o tempo) da anarquia
«O mundo só será salvo, se o puder ser, por insubmissos. Sem eles, que seria feito da nossa civilização, da nossa cultura, daquilo que amávamos e que dava uma justificação secreta à nossa presença neste mundo. Esses insubmissos são «o sal da terra» e os responsáveis de Deus.»
André Gide
«Não são as sociedades secretas, nem sequer as organizações revolucionárias, que acabam com os governos. A sua função, a sua missão histórica, é preparar os espíritos para a revolução. E quando os espíritos estão preparados - com a ajuda das circunstâncias externas -, o último impulso vem, não do grupo iniciador, mas da massa que está fora das ramificações da sociedade.»
'Paroles d'un révolté', Piotr Kropotkin
| 2021, Una escuela en Cerro Hueso, Betania Cappato |
numa coisa semi-autobiográfica, o intimismo e o estilo semi-documental (a atenção ao detalhe, o olhar os siêncios, etc) resultam na análise de que a comunidade é determinante para a reabilitação quer da doença (autismo) quer da frustação paternal; a sensibilidade e a dedicação (e a paciência) como factores decisivos; muito interessante.
"Ter paciência é difícil, mas o resultado é gratificante."
Jean-Jacques Rousseau
"Não há lugar para a sabedoria onde não há paciência."
Santo Agostinho
| 2024, No other land [Yuval Abraham, Basel Adra, Hamdan Ballal, Rachel Szor] |
no other land devia ser filme obrigatório em todas as escolas, em todos os institutos, em todos os lugares onde se preze a humanidade e o direito à vida, à dignidade e a todos os direitos alienáveis do ser humano; num tempo que se intitula civilizacional, que se orgulha dos avanços tecnológicos e científicos, etc, é completamente absurdo e incompreensível que se permita (e se financie e se defenda e se propagandeie como o oposto daquilo que é) um regime colonial, despótico e desumano como o regime sionista; ainda bem que o cinema tem (ainda) o poder de expor a(s) verdade(s)
"Quando a injustiça se torna a lei, a resistência passa a ser um dever."
Thomas Jefferson
"MORCEGOS
Morcegos na minha janela
Sugam as minhas palavras
Morcegos à entrada da minha casa
Atrás dos jornais, nos cantos
Seguem os meus passos,
Observando todos os movimentos da minha cabeça.
Por trás da cadeira, os morcegos observam-me
Seguem-me nas ruas
Espreitam sobre os meus livros
Ou sobre as pernas das raparigas...
Vigiam-me, vigiam-me sempre.
Há morcegos na varanda dos meus vizinhos
E aparelhos escondidos nas paredes.
Agora os morcegos
Estão à beira do suicídio.
Estou escavando uma estrada para a luz do dia."
Samih Al-Qasim
| 2023, Slimane, Carlos Pereira |
slimane não só consegue evitar o registo panfletario como embarca numa viagem formalista e simbólica naquilo que me parece um futuro distante (ou não) e distópico; no âmago dessa distopia reside a desolação da marginalização, o luar e a noite como refúgios e a consciencialização do poder interior do indivíduo; muito bom.
"RETRATO
Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?"
Cecília Meireles