|résistance|
Em paris est une fête, segundo filme de sylvain george que vejo, cinema que muito me apraz, estamos perante a documentação in loco de um dos maiores problemas europeus, a imigração global em massa de refugiados; cinema observacional, manifesto documental que foge do convencional mas que tem ganho admiradores e que, podemos dizê-lo, está na moda num certo circulo de cinefilia mais exigente; paris este une fête, como nuit obscure o viria a ser em 2022, é na sua génese uma análise aos êxodos do norte de áfrica e do médio oriente, mas sobretudo do norte de áfrica, e carrega assim todo o peso político possível; filmado a preto e branco, com a propensão para a escuridão da noite pautar a profundidade de campo dos planos citadinos, começa por observar a degradação do já colapsado refluxo migratório e nuns a luta pela sobrevivência, noutros a resignação, da crise dos refugiados e consequentes manifestações contra a lei el khomri, conhecidas como nuit debout; o filme de george recorre ao simbolismo e à metáfora, o nu como analogia, a negrura também, existe portanto uma certa poesia nas imagens, uma certa expressividade lírica e surreal nas suas deambulações nocturnas pela cidade e pelos ritos apresentados, mas também uma ironia e um grito de denúncia social e política que caminha lado a lado com a anarquia, as guerras (e mormente quem as faz) como origem dos êxodos de refugiados que desaguam nas grandes capitais europeias, aqui em especifico Paris, que não estão, de todo, preparadas para tal e que tem consequências nos povos e nas suas gentes e nas suas vidas, naqueles corpos marcados pela opressão e pela travessia rumo à libertação; é portanto, na crítica social e política que se trabalha, alastrando para a denúncia da futilidade do pós-modernismo, do consumismo e do materialismo, da corrupção, num mundo por si só tão divergente e tão díspar, tão hipócrita e tão negligente (é especialmente mordaz aí), sempre com a negrura e a escuridão declarada como alusão ou metáfora do caos e das trevas em que a civilização está mergulhada, coisa portanto, de um pessimismo aterrador e urgente, mas ao mesmo tempo documentador da luta civil pela igualdade, da luta daquela gentes, daqueles refugiados, registador do movimento, da revolta, da fúria, da resistência.
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
Álvaro de Campos
Ao mesmo tempo, as múltiplas andanças dos mineiros, e mais particularmente de Mohamed, nas diferentes linhas de falha, criam pontos de convergência, tornando possível ligar questões que certas vontades políticas gostariam de impor a si mesmas. Mais precisamente, e isso é bastante irônico, esses corpos designados como estrangeiros, supostamente para perturbar e perturbar até mesmo os marcos da identidade nacional, vêm ao contrário para nos lembrar eloquentemente os pontos de conexão entre certas realidades, pontos comuns: as políticas em ação – políticas nacionais e internacionais, com consequências devastadoras, que são apoiadas e legitimadas por efeitos de medo e espanto, bem como pela ausência de qualquer forma de atenção e consideração da população.
Sylvain George
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