São transformações que não se devem apenas à idade que as personagens agora têm; devem-se ao que lhes aconteceu e, sobretudo, ao que aconteceu ao mundo que as envolve. The Last Picture Show não era só a crónica das deambulações de um grupo de personagens apanhado no fim da adolescência; era também o filme sobre o fim de um mundo, e sobre o vazio que ficava depois desse fim. Do mesmo modo, Texasville não se limita a retratar as personagens agora na idade adulta, mas preocupa-se em apontar o modo como esse vazio se abateu sobre elas e foi -ou não - preenchido e iludido.
The Last Picture Show era também um discurso sobre o cinema, que passava não só pelo modo como o cinéfilo Bogdanovich prestava homenagem a John Ford (nunca ninguém mimetizou tão bem o cinema de Ford como Bogdanovich o fez então) como, sobretudo por alguns aspectos do argumento. Entre estes, o encerramento da sala de cinema da terra, na sequência da morte do seu dono, o “fordiano” Ben Johnson. E era com a sala de cinema que Picture Show abria e fechava, em duas dolorosas panorâmicas. Por oposição ao “travelling”, em que a câmara “perfura” o espaço e de certo modo o vence, a panorâmica, mera rotação da câmara em tomo do seu eixo, é um movimento em que toda a liberdade é ilusória: o espaço circundante permanece inatingível, a sensação de uma claustrofóbica imobilidade impõe-se. É a mesma imobilidade, e a mesma circularidade, que encontramos em Texasville. Este também é um filme “em panorâmica”, com as personagens a mexerem-se muito mas a andarem em círculos. E é de novo com panorâmicas que Bogdanovich abre e fecha o filme; pormenor significativo, tomado “símbolo” da mudança dos tempos: na panorâmica de abertura, em vez da velha sala de cinema o que se vê é uma antena parabólica.
Esse é o sinal de que Texasville vem de algum modo completar o discurso sobre o cinema que já estava presente em The Last Picture Show. O filme de 1971 era um filme sobre a “morte do cinema”; Texasville, sobre o que aconteceu depois dessa morte. Não que Bogdanovich sublinhe essa linha temática e a transporte, de modo explícito, para primeiro plano. O que lhe interessa, subtilmente, é fazer coincidir o “vazio” criado pela morte do cinema com o “vazio” que se abateu sobre as personagens. Não por acaso, todas as personagens surgem marcadas por alguma perda (da auto estima, no caso de Jeff Bridges; do filho, no caso de Cybill Shepherd; do juízo, no caso de Timothy Bottoms), e todas elas nos aparecem - perdoe-se o jogo de palavras - “em perda”. É essa perda que está na base da radical mudança de estilo em relação ao filme precedente: Texasville vive num estado de euforia artificial, como se se tratasse, para as personagens, de nunca ficar a sós com o silêncio e a melancolia que reinava em Last Picture Show (e repare-se que a música, aquela “country” triste que com tanta força pontuava o filme de 1971, continua presente; simplesmente, por alguma razão, parece que já ninguém a ouve). Mas é essa mesma perda que autoriza Bogdanovich às mais poderosas referências directas a Picture Show: através das fugas da personagem de Timothy Bottoms, em estado de semi-inconsciência, para as ruínas da antiga sala de cinema, onde continua a “ver” e a “ouvir” os filmes que, evidentemente, já não pode ver nem ouvir. E repare-se num pormenor genial, que quem tiver agora visto os dois filmes não deixará de notar: sempre que Bogdanovich nos dá, nessas cenas, o contracampo do olhar hipnotizado de Bottoms, o que vemos são planos em que o céu invade todo o écran - o mesmo céu que invadia o écran de Picture Show, na cena do funeral de Ben Johnson, ou seja, na cena do funeral do cinema.
Texasville foi um “flop” absoluto quando se estreou, nada fazendo para recuperar - junto da indústria - a carreira de um dos cineastas mais “amaldiçoados” da Hollywood contemporânea. Ao que parece, o tom cáustico e cruel com que Bogdanovich tratou agora as suas personagens (para quem, em 1971, tinha sempre um olhar doce) terá sido o maior “put off” para o público. Isso e o registo de “sitcom” acelerada e levemente ordinária com que Bogdanovich filmou, por exemplo, todas as cenas com a família de Jeff Bridges. Uma coisa e outra (causticidade e “sitcom”) parecem, no entanto, essenciais; causticidade, porque Texasville tem muito de (auto)punitivo, e estas personagens, pelas quais em 1971 todos nos podíamos apaixonar, vivem agora o drama e a consciência de que já ninguém se vai apaixonar por elas; “sitcom”, porque se em 1971 havia um espelho onde as personagens se podiam rever (o cinema, John Ford), em 1990 esse espelho, como o indica a antena parabólica do início, só pode ser a televisão. É isso: se Texasville, um dos grandes filmes “esquecidos” da década de 90, é “desagradável”, é porque nos fala de um mundo em que a televisão separou o que, muitos anos antes, o cinema tinha unido.
Luís Miguel Oliveira
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