30 de dezembro de 2022


 

2021, Babi Yar. Context, Sergei Loznitsa


de notar que Loznitsa evita a demasiada exposição da organização nacional ucraniana (o envolvimento ou colaboracionismo é apenas referido e não explorado, sem que se deixe de realçar as ordens alemãs) e parece, ao invés, sugerir ou talvez aludir a uma culpa "nacional", são mesmo as palavras de Loznitsa a referir que os judeus foram massacrados sem resistência do povo... Mas mais que a sugestão de culpa, Loznitsa parece querer mostrar (ou sugerir) um colaboracionismo não só das milícias nacionais ucranianas (os tais bandeiristas), bem como da população... cronologicamente, Loznitsa mostra-nos a recepção calorosa e em clima de festa dos populares de Lvov aos alemães, nomeadamente uma faixa onde se inscrevia "viva Hitler" ou coisa semelhante, mostra o já prenúncio do que sofreriam os judeus quando, como retaliação a um massacre na prisão de Lvov pelos soviéticos antes de abandonarem a cidade, os tais nacionalistas culpam e massacram os judeus, para depois se centrar na figura de Hans Frank, o governador alemão e na sua (na representatividade alemã) "comunhão" com o povo. Pelo meio ainda mostra a "absolvição" de prisioneiros soviéticos (ucranianos) ao serem entregues às respectivas esposas e/ou pais... Ainda assim, não há ali uma condenação explícita quer ao povo ucraniano quer à tal organização dos nacionalistas ucranianos, há uma sugestão perante os factos, há citações (uma de Vassily Grossman) e outra dum jornal local de Kiev que (fiquemo-nos por alusão) aludem a uma culpa e a um colaboracionismo do povo ucraniano. Culmina nos julgamentos e nas execuções de alguns soldados nazis. Babi Yar é uma reconstituição histórica aprimorada (imagens tratadas, som feito) duma zona geográfica que raramente é mencionada nos livros ou menções do Holocausto e que foi palco de um dos maiores genocídios da história. Não é por acaso que Loznitsa é, actualmente, um dos melhores documentaristas do mundo.

21 de dezembro de 2022


 

An Cailín Ciúin, Colm Bairéad, 2022


Baseado no conto de Claire Keegan, Foster, An Cailín Ciúin é uma fábula comovente que fala de afecto, e da falta dele. Mas o mais interessante em An Cailín Ciúin é a forma como Colm Bairéad filma este seu filme de estreia (uma vista de olhos pelo imdb mostra-nos que os trabalhos anteriores são sobretudo em televisão).
Numa família numerosa e disfuncional, quatro filhas e um quinto a caminho, Cáit é uma criança introvertida que acusa falta de atenção e de afecto, coisa que irá encontrar na sua jornada em casa de uns “pais adoptivos” enquanto a mãe tem o quinto filho.
An Cailín Ciúin é coisa neorealista, mas dum realismo efabulado e lírico, voga pelas águas da perda, da carência e do amor como sentimentos mais fortes e mais valorosos que a inveja, a mesquinhez e o menosprezo. E isto tudo filmado por Bairéad num tom cinzento e sombrio, frio e austero, numa alusão não só à disfuncionalidade da família e da tragédia “assombrada” do passado que irá “descobrir” no seio daquele casal (Eibhlín e Seán), como também, parece-me, à própria identidade cultural daquela Irlanda (e todo o “mundo” british) negra e fria. Maravilhoso.

19 de dezembro de 2022

2003, L'Esquive

2007, La graine et le mulet

2013, La vie d'Adèle

2017, Mektoub, My Love: Canto Uno



O cinema de Abdellatif Kechiche é coisa que vive do ritmo, como se de uma dança se tratasse (e Mektoub é literalmente uma dança), é coisa directa e palavrosa, mas sem rodeios, sem se perder ou se aventurar em pretensiosismos ou deambulações filosóficas... não, o cinema de Kechiche vive do realismo, das relações interpessoais, da líbido, da sedução e da auto-descoberta dos seus personagens, vive do ritmo vertiginoso da acção, do naturalismo, dos corpos, dos planos e dos travellings “erotizados”... goste-se ou não, o cinema de Kechiche é uma lufada de ar fresco e de qualidade indubitável.

7 de dezembro de 2022



 

1972, Fratello sole, sorella luna, Franco Zeffirelli
2000, Sanam, Rafi Pitts


Duas das últimas coisas vistas são petardos assombrosos e abismais da sétima arte, tão diferentes quanto transcendentais e líricas (cada um à sua maneira), perduram na memória desafiando a perpetuidade… Sanam é coisa tão pungente quanto as vias sacras mais penosas da história, coisa realista e crua que se depara com a irascibilidade da perda e da injustiça social, retracto socioeconómico e alienatório daquela gente e em particular daquela criança que, mais que a perda paterna, enfrenta a estigmatização da difamação dessa figura paterna já ida para “o outro mundo”… já Fratello sole, sorella luna do italiano Zeffirelli é coisa trovadora, duma trova tão leda quanto sacra e capaz de nos transportar no tempo, é coisa bucólica e mediúnica (não apenas teológica), navega na palavra e no sermão para nos trazer o amor fraternal e a alegria da simplicidade e da renúncia à riqueza e ao materialismo. Filmes assombrosos!