il caimano, Nanni Moretti, 2006
29 de julho de 2021
22 de julho de 2021
PALAVRA E CINEMA
Persiste ainda hoje um preconceito que vem da pré-história do cinema. Comecemos pelo princípio. A família Lumière ocupava-se da fotografia e as suas oficinas fabricavam os materiais necessários à tiragem e reprodução de fotografias. Paralelamente, aí pelo final do século XVIII, vinham aparecendo vários modos de animar figuras desenhadas ou pintadas, com precários movimentos. Aos Lumière, emi-
nentes fotógrafos, ocorreu então esta ideia de sonho – imprimir movimento ao que era parado nas chapas fotográficas. O sonho tornou-se realidade e em Dezembro de 1895, com o seu invento Cinématographe, faziam a primeira projecção pública. Tinha nascido o cinema. O efeito foi surpreendente, não obstante, os próprios Lumière consideraram-no, na ocasião, como coisa efémera. Não suspeitaram que daí viria a base para esse todo complicado e sofisticado complexo, não só do ponto de vista cinematográfico como de todo o audiovisual, que domina hoje o mercado, e que tanto afecta a pureza do Cinématographe. O certo é que o cinema nasceu mudo, como muda é a fotografia, muda pela sua própria natureza de instantâneo.
Persiste ainda hoje um preconceito que vem da pré-história do cinema. Comecemos pelo princípio. A família Lumière ocupava-se da fotografia e as suas oficinas fabricavam os materiais necessários à tiragem e reprodução de fotografias. Paralelamente, aí pelo final do século XVIII, vinham aparecendo vários modos de animar figuras desenhadas ou pintadas, com precários movimentos. Aos Lumière, emi-
nentes fotógrafos, ocorreu então esta ideia de sonho – imprimir movimento ao que era parado nas chapas fotográficas. O sonho tornou-se realidade e em Dezembro de 1895, com o seu invento Cinématographe, faziam a primeira projecção pública. Tinha nascido o cinema. O efeito foi surpreendente, não obstante, os próprios Lumière consideraram-no, na ocasião, como coisa efémera. Não suspeitaram que daí viria a base para esse todo complicado e sofisticado complexo, não só do ponto de vista cinematográfico como de todo o audiovisual, que domina hoje o mercado, e que tanto afecta a pureza do Cinématographe. O certo é que o cinema nasceu mudo, como muda é a fotografia, muda pela sua própria natureza de instantâneo.
O Cinématographe, dando movimento à fotografia
através duma ritmada sucessão de instantâneos, criou uma realidade
de fundo onírico, única, que acrescenta à fotografia o movimento,
o que daí levou a que os americanos viessem a denominar o cinema por
Movies. O cinema, porém, cresceu e começou a falar e a
dar-nos a ouvir, nos mais variados tons dos sons, desde ruídos à
música, e a ver as mais va-riadas tonalidades das cores do
arco-íris; fez-se grande, deu autonomia às suas componentes, imagem, som e cor, a cobrir uma independência simultaneamente
dependente da vida, da literatura e das belas-artes, enfim, de todas estas
partes que compõem um todo complexo, e não só da imagem que lhe deu origem, e
que hoje tanto importa que se mova ou não. Mais conta fará no cinema hoje a
estrutura e a montagem do que as imagens, as cores, os movimentos, os sons, as
palavras, a música, como simples mostra.
Assim o equívoco que se gera hoje no
conceito de cinema provém, quanto a mim, da pré-história. Pré-história a que
se referiu, certa vez, a eminente escritora Agustina Bessa-Luís, acerca da
genética, ou melhor das reminiscências escondidas, acumuladas no psico da
mentalidade e da memória, no ser de cada um dos seres que compõem a humanidade,
e que eu transponho agora para a questão do Cinématographe, isto é, como uma
procura das eventuais razões que iludem o conceito que hoje se forma, na generalidade, acerca do cinema.
Vem isto a propósito do conceito muito generalizado,
repito, que insiste em confinar o cinema a imagens em movimento, quando a
evolução do cinema durante mais de um século, e mais de meio século depois de
ter ganho o som e a cor, depois de ter adoptado estes fundamentais elementos, de
os ter adquirido com plena legitimidade, depois de terem ganho uma autonomia
própria e de serem eles o que mais aproxima o cinema duma realidade concreta, em
que o som é, justamente, o elemento que verdadeiramente reclama movimento, pois,
sem este, o som não existe, enquanto a presença da imagem não de- pende do
movimento, uma vez que é dela apenas um complemento extra, e não depende do mo-vimento para que possa existir, como o prova à exaustão, por exemplo, a pintura.
Não deixará de ser oportuno apresentar um caso recente onde praticamente a
imagem figurada é substituída por uma imagem fixada em fundo cinzento-escuro,
não na totalidade do filme, mas quase (e sabe-se que isso aconteceu já em
anteriores filmes, cuja palavra, som ou música, tinham o suporte em imagem de
fundo negro ou neutro, embora em mais ou menos reduzidas parcelas). Estou a
referir-me ao filme Branca de Neve (2000), de João César Monteiro, que tanta
polémica levantou e que é um exemplo flagrante onde o Kino ou o Ciné é dado pela
palavra e onde as poucas imagens, figuradas umas, neutras outras, são ora
expressão, ora suporte neutro.
Com efeito, a Palavra consubstancia já, em si,
imagem, movimento e acção. Evidentemente que não vamos ao extremo de suprimir
a imagem ao cinema, mas também não se deseja que se extremem outros pontos,
que compõem hoje a essência do cinema, pois que o seu conceito correcto abrange
um sentido mais complexo e envolvente que não exclui as duas fortes colunas de
que actualmente se compõe: a) Imagem, a preto e branco e/ou a cor; b) Som,
palavra, música e ruídos. Sendo, também, em certos casos, a ausência de qualquer
delas, desde que projectadas no ecrã.
Sim, porque o cinema, resumindo dum modo
concreto, é a projecção num ecrã ao fundo duma sala e diante duma plateia, tendo
por trás desta uma cabine com máquinas de projecção, o que faz do cinema um acto
social e não solitário como, por exemplo, a televisão.
Se desejarmos um
conceito de cinema assim alargado, como acabamos de expor, estamos a eleger
como cinematográficos todos os elementos que o compõem. A identidade
cinematográfica fica enriquecida e, quanto a mim, ajustada. Poderá tal conceito
embaraçar o espectador menos atento, e até, eu sei lá, certa crítica, embora
isto me pareça contraditório. Contudo, admito que haja quem tenha dificuldade em
aceitar este ponto de vista, que me parece justificado em oposição à antiga
concepção, a meu ver preconceituosa, de que o cinema se reduz a imagens em
movimento.
Não deixa esta circunstância, para um realizador que neste ponto
esteja livre de preconceitos, de poder tornar-se dolorosa, pois que nada pode
doer mais ao realizador consciente do que a incompreensão do seu trabalho,
tomando conceitos por preconceitos, ou deturpando os intentos dum filme com
desvios do sentido mais profundo da sua expressão.
Referindo-me a Palavra e
Utopia, noto em algumas interpretações uma certa confusão entre três coi-sas: a
forma, o texto e o contexto. Condenando ou elevando um ou outro ponto, mas em
prejuízo da unidade do trabalho. É frequente verem em Palavra e Utopia um Vieira
à Manoel de Oliveira. Quem conheça bem o que foram os acontecimentos, os sermões
e as cartas do Pe. António Vieira poderá ver um filme de Manoel de Oliveira, mas
não um Vieira à Manoel de Oliveira. Neste filme não há palavra ou acontecimento
que não seja tirado dos sermões, ou das cartas, ou duma base histórica fundada e
reconhecida. Nem nenhuma minha, nem nenhuma do historiador, Pe. João Marques que
me acompanhou e forneceu os elementos para elaborar a minha planificação. Só pus
da minha lavra as palavras: “Chegou agora”, quando entrego a carta ao Pe.
Bonucci. Só não digo que é um filme histórico, porque eu não estava presente há
trezentos anos para ver com toda a justeza como se passaram as coisas. Mas nos
púlpitos, nos que havia, e eram quase todos, os actores pregaram partes do que
Vieira pregou nesses mesmos púlpitos, logo nessas mesmas igrejas.
Há quem diga
que os três actores não casam bem entre si e entre os três Vieiras. Esquecem o
próprio Vieira que, já velho, em sermão dito pelo actor Lima Duarte, nos fala
das quatro vigílias, e as transpõe para as quatro idades do homem: a do menino,
a do mancebo, a do adulto e a do velho. E faz, para cada um deles, um retrato
diferente, uma entidade diferente, um comportamento diferente. Como havia eu,
depois de conhecer este sermão de Vieira, fazer os três semelhantes?
Procurei no
filme ser tão correcto quanto me foi possível, dentro do que, como décor,
encontrei como era ao tempo. Porém foi pouco, mesmo muito pouco, para não dizer
que quase nada existia que não tivesse sido alterado. E isso obrigou a
submeter-me à escassez do que havia há trezentos anos antes. E não pretendendo
o impossível, à maneira americana como é hábito fazerem nos filmes congéneres,
reconstruindo ficções que se afastam da realidade histórica em favor do grande
espectáculo, condicionei e limitei-me ao que havia. Desta circunstância,
resultou um filme sóbrio, sólido e modesto nos aparatos, mas historicamente
certo. Perante a figura do Pe. António Vieira, ao contrário do realizador se
fazer so- bressair, foi ele a esforçar-se por fazer sobressair Vieira na pele
dos actores que o representaram em cada uma das suas três vigílias, sendo a
última a privilegiada, pois nela se descarregava toda a dramática luta por que
pelejou nas anteriores vigílias desde o primeiro sermão pregado antes da sua
ordenação.
Gostava de tocar ainda numa outra questão, aliás dupla – a religiosa
e a ateia. É que isto parece influenciar a visão crítica de certas pessoas. O
facto dos temas e/ou dos realizadores que os tratam serem de carácter religioso
ou ateu parece ter influência nos critérios, segundo a formação do espectador,
e/ou até quando este, ao ver o filme, toma o filme pela postura do realizador,
quantas vezes oposta ao que mostra. Teremos que fazer aqui um parêntesis.
É
evidente que todos nós somos um acumulado de influências e de opções. Isto,
porém, não impede uma imparcialidade, digamos uma objectividade, aquela mesma
que nos leva a respeitar a opinião do outro, aceitando ou contrapondo a sua. Mas
quando olhamos o mar, vemos o mar, do mesmo modo que vemos uma igreja, ou uma
escola, ou o céu, ou o chão, conforme olharmos para cima ou para baixo. A isto
chamaremos objectividade. É nessa atitude de objectividade que o realizador
deverá colocar-se perante o assunto que vai realizar, analisando-o de fora das
suas convicções, tanto quanto lhe seja possível. A vida é o que é e a arte
também não pode fugir àquilo que é. Mas não é defesa, nem ataque, nem
propaganda. Se fala dum santo, verdadeiramente santo, não está a fazer a
propaganda da santidade. Está a interpretar um facto, a dar uma biografia fiel
aos acontecimentos, ou a expressar um sentimento, ou etc., etc. O mesmo poderia
dizer dum assassino nato. No caso de Palavra e Utopia não se está a fazer a
apologia do Pe. António Vieira, mas a repor o que historicamente é dele
conhecido. O que o realizador possa dar como juízos de valor não está em causa
no filme, porque nele não há posição crítica, mas apenas exposição que deixa ao
espectador a liberdade de tomar ele a sua posição.
Não influenciou,
consequentemente, o realizador, porque este se limitou aos factos e não fez
juízos. Exemplo: o Quinto Império. A Inquisição repudiou o Quinto Império. No
filme, o realizador limitou-se a relatar os acontecimentos conforme vêm
descritos. Mas há quem aceite a ideia de um Quinto Império, mesmo sendo ateu.
Eu, pessoalmente e, fora do filme, penso até que a ideia corresponde a um
desejo antigo e mesmo a acções desenvolvidas através da história universal que
nos demonstram essa vontade exemplificada. Mesmo hoje, olhando para a ideia da
União Europeia e para a da globalização não é difícil chegar a induzir o mesmo.
Se com razão ou sem ela digo isto, digo-o com a mesma ironia com que olho a
Clavis Prophetarum. Por isso se acrescentou à PALAVRA esta outra palavra:
UTOPIA.
Se um escritor descrever um crime não pode ser tomado como um criminoso.
De resto, essa questão se pôs quanto ao romance Crime e Castigo de
Dostoiévski. Como poderia um escritor descrever com tanta precisão e detalhe um
crime sem haver jamais cometido algum? Pela simples razão de que o instinto do
crime está latente em cada homem, mais submerso nuns, mais à superfície noutros
e à tona no criminoso nato. O mesmo poderíamos dizer de muitos outros instintos
e sentimentos. Não há ateus convertidos? E crentes que perderam a fé? Vá daí
julgar-se que por se tratar dum filme sobre um cristão e padre jesuíta, como é o
caso de Palavra e Utopia, o realizador, mesmo sendo objectivo tanto quanto em
arte possa ser-se, enquanto religioso dessa religião ou doutra, agnóstico ou
ateu, passará aos olhos de quem critica, de modo superficial, como cúmplice do
facto que é mostrado, comprometendo assim todos os seus julgamentos sobre
valores e factos. E não será isto, por sua vez, levar a crítica ao desvio
grave de olhar para o realizador como se fora ele um Vieira, tomando um pelo
outro?
Ver num filme o realizador a sobrepor-se à realização, isto é, ao
contexto é extremamente grave para que o faça, mas se a culpa não vier do
realizador, mas duma deturpada visão de quem critica, então é duplamente grave.
A realização dum filme é, acabará por ser, ou redundará num impulso do
realizador, onde o que importa para um verdadeiro artista é o resultado e
nunca uma demonstração de habilidades pessoais. Assim tanto melhor é um filme
quanto mais sobressair o contexto e mais esquecido e apagado fique o realizador.
Quando num filme, como em Palavra e Utopia, se trata do Pe. Vieira, fazendo-o
historicamente correcto, é Vieira que estamos a ver e não o realizador, que é,
neste caso, mero instrumento, interpretativo sim, mas instrumento, como instrumentos são, e de primeira ordem, os actores das personagens que cabe a cada
um representar. Podemos alterar as ficções, mas não podemos alterar os factos.
Podemos simular a realidade, mas não podemos modificar os acontecimentos
históricos, como é habitual ver-se na maior parte dos filmes de ficção
histórica.
O cinema é uma expressão artística e, como tal, deve ser aceite com
autenticidade e largueza de vistas, muito embora, sendo uma arte que envolve
todas as outras artes sem excepção, tenha, obviamente as suas regras, regras
que fazem das artes um jogo, jogo no melhor sentido, e não pode haver jogo sem
regra, tal como não pode haver ciência sem respeito pelas leis da natureza. Mas
leis até ao limite do possível, porque se forem ultrapassadas corre-se o risco
de perder o conceito de ser coisa e causa. Fala-se muito do abuso da palavra no
cinema, mas disto já falámos anteriormente, dizendo que em certas
circunstâncias será uma das inumeráveis formas ou fórmulas cinematográficas.
Mas há abusos excessivos e injustificados e frequentes de movimentos da câmara
em filmes, e disto nunca vi que se falasse, quando em boa verdade tais movimentos de câmara não são justificáveis porque, na maior parte, não respeitam a
autenticidade das formas do cinema, antes exibem acrobacias de uma câmara
acrobata que as técnicas mais sofisticadas sofisticam, e fazem do cinema coisa
de circo.
Porto, 12 de Janeiro de 2001.
Manoel de Oliveira
in Cahiers du
Cinéma, n.º 555, março de 2001, p. 42-45).
É com alguma comoção que me vêem aqui.
“O que eu andei para aqui chegar”, cantaria o
vosso Zé Mário.
Também eu sei: foram filmes desde Le Soulier de
satin (O Sapato de Cetim, 1985), até ao fim. Pelo
menos até a uma despedida afinal recente, de uma
amizade imensa e de uma imensa admiração.
E é também com alguma emoção que me vêem aqui
em Serralves, finalmente na Casa Manoel de Oliveira,
de que desde sempre ouvi falar como desejo seu,
no Porto, sua cidade, que num dia inesquecível, ele
me fez visitar no seu carro com ele ao volante, mostrando-me de passagem como conduzia bem e lhe
conhecia de cor as ruas, com um entusiasmo quase
infantil, mostrando-me a janela onde Teresa morreu
quando Simão Botelho partiu na nau pelo rio fora
e na Foz do Douro entrou no mar, esse grande mar,
tantas vezes filmado, no seu eterno movimento como
imagem do Espírito Universal, e acabando na casa da
Vilarinha, a casa das Memórias e Recordações que
pediu que abrissem para me contar muito mais como
a tinha querido construir do que a história triste de
como a perdera. Sem uma palavra de ressentimento,
com aquela elegância com que tratava tanto os assuntos graves, como fazer um nó de gravata. Sim, até
isso ele me ensinou.
Não há vez que passe na avenida dos Aliados que eu
não me regozije que seja a sua opinião que aqui prevaleceu sobre a do arquitecto Siza Vieira e que fosse o
mesmo Siza quem, com a sua concordância, viria a desenhar o sítio em que agora nos encontramos como a
Casa do Cinema Manoel de Oliveira. O mesmo a quem
noutra questão se opunha. Gente bem formada, podia
ele dizer. E divertido me disse (ipsis verbis) “Então não
dizem que ele agora quer pôr o cavalo de cu para o rio
e virado para a Câmara Municipal?”.
Comoção também por irmos ver um filme seu numa
sala de projecção, na relação com os espectadores
(sim, facilmente se zangaria se alguém lhe falasse
no público, já que para ele cada espectador era uma
pessoa, e muitas pessoas eram uma cidade: sim,
tinha uma noção do cinema e da arte em geral com
uma função política como a do teatro grego: pôr a
cidade em diálogo sobre os temas que a todos dizem
respeito, em público, isso sim). Para ele a arte era
uma intervenção política. E nunca um passatempo.
Um divertimento, sim, pois claro, para os que têm
prazer no convívio, na troca de ideias com os outros.
Comoção por poder ser eu aqui chamado, e ser
legítimo que se lembrassem de me dar esse prazer,
pelo tanto que gastei da minha vida a perceber o
seu trabalho e a conhecer o seu pensamento, e por
isso poder aqui vir dizer, no Porto, o quanto ele foi
meu mestre de vida, em muitos aspectos e até num
terreno particularmente delicado, o da religião. O
seu Acto da Primavera (1963), se não me baptizou,
ficou responsável por uma visão cristã da vida a que
permaneci fiel e que passei a ler em todos os seus
filmes. Subscreveria (quase) tudo o que ele pensava
sobre a função da arte e a condição de artista. Como
escrevi no texto que o João Fernandes me pediu para
figurar no catálogo da exposição que Serralves lhe
dedicou no seu centenário, comissariada pelo próprio
João Fernandes, por quem, ao ver como nessa altura
procedeu, ganhei também grande amizade, vejo o
início desse filme como uma espécie de arte poética
de toda a sua obra quando começa com as palavras
do evangelho de João: “No princípio era o Verbo e
o Verbo estava em Deus.” Quantas vezes me disse
que a vida era um mistério? E que era como mistério
que ele, ao filmá-la, a tentava entender. Eu subscreveria (quase) tudo o que julgo que pensava sobre
a condição de artista, a sua convicção de que cada
filme corresponde a uma tomada de posição política.
Julgo, como ele, que o artista tem de entender e
ter a coragem de assumir a responsabilidade de ser
membro da sociedade em que se insere, correndo
os riscos que isso lhe pode trazer, sem medo, porque
não há erros na partilha do pensamento, e a nossa
missão, a missão da arte, é comunicar com os outros,
fazer avançar o mundo. Já contei isto mil vezes, mas
tudo se tornou claro quando, já depois de eu ter feito
quase sempre a olhar para a câmara horas de rodagem de todo o Soulier de satin (e lembrem-se que a
primeira coisa que se ensina a quem quer ser actor
de cinema é que é isso mesmo que não se deve fazer), um dia disse-me assim: “Sabe porque é que eu o
mando olhar para a câmara? Para que as pessoas que
depois estiverem na sala a olhar para o ecrã sintam
que está a falar para eles. O olho da câmara é o olhar
dos espectadores.” Até aí eu tomava-o pelo olhar do
realizador. Coisas diferentes naquilo que mais vezes
uma pessoa tem de fazer: escolher o ponto de vista
que importa assumir.
E comove-me ainda (isto é que aprendi mesmo
muito pouco tempo depois de ele mo dizer): “Não
chore! Se você chorar, o público... já não chora”; mas,
continuando, comove-me estar a dizer estas coisas
neste museu que traz outra memória para mim
inesquecível, quando ele já com os seus 100 anos se
deslocou de propósito a esta casa de Serralves para
me mostrar pessoalmente a exposição e me contar
algumas coisas que gostava que eu soubesse, por
exemplo, que nos seus primeiros filmes, tinha ele,
Oliveira, antecipado muita coisa que se pensou que
eram invenções dos primeiros grandes cineastas
russos Dziga Vertov, Eisenstein, etc., e não influência
deles sobre o Manoel. E diante do lindíssimo quadro
do Júlio que sempre vi em sua casa e que estava na
exposição, me explicava como para pôr o marinheiro
do quadro a dançar, tinha conseguido fazê-lo com
a câmara a dançar e não a figura do quadro. E isto
ninguém tinha feito antes.
Mas, mais que tudo, Serralves é para mim o sítio em
que, em nome de todos aqueles que tinham trabalhado com ele, incumbido por outro em quem Oliveira
depôs toda a sua confiança, o João Bénard, e que, por
acaso ou não, também tantas vezes foi actor, fiz o nosso discurso de parabéns em que lhe recordava como
com a sua obra tinha criado mais vida. Perguntava-lhe
eu, enfaticamente, como nos textos de Vieira: “Já
pensou, Manoel, em toda a vida que o senhor gerou
entre as pessoas que têm participado nos seus filmes?” Basta olhar para os créditos no princípio ou no
fim. Tanta gente, tantas pessoas! Talvez muitos dos
que trabalharam com ele não tivessem entendido o que estavam a fazer... Não faz mal, fizeram-no e por o
terem feito muita coisa mudou.
E se é de facto verdade o que eu entendi das nossas
últimas conversas, das poucas conversas que tive-
mos, porque, no fundo, muito convivemos ao longo
da minha vida, mas desde sempre pouco falávamos
sobre profundidades... Mas nesse dia falámos, falámos
sobre a morte, falávamos... Se ele acreditava na ressurreição... E se é verdade o que ele me disse ao fim
de mais de 100 anos de vida sua a querer perceber se
era assim, se o que acontece quando morremos é que
a personalidade, que é o corpo de cada um, morre,
mas no momento do último suspiro o espírito deixa o
corpo e mistura-se com o Espírito Universal. Se isso
é verdade, aqui temos também connosco e como
anfitriões nesta projecção, não só o próprio Manoel,
como o próprio Vieira, dissolvidos na memória do
Mundo, e esta projecção seria uma espécie de novo
Pentecostes, com o Espírito Santo a descer sobre nós.
Por pudor não diria tanto, mas não sei se não nos
vai acontecer o mesmo... Se tudo isto pudesse ser
brincadeira, e brincadeira seja porque o que de facto
aconteceu, verdade verdadinha, é que nem eu nem
o António Preto ficámos mais longe da memória do
mundo depois de termos visto este filme.
Eu pelo-me por afectividades, mas parece-me
que já chega...
Estou contente por estar aqui, e depois de ter representado em tantos dos seus filmes e de me ter
tornado tão seu amigo, de tanto ter aprendido tanta
coisa com o seu convívio, coisas que adoptei como
se passassem a ser minhas. E se me sinto tanto em
casa de Manoel de Oliveira, também na Casa Manoel
de Oliveira não posso deixar de me sentir em casa.
Ainda por cima depois de se ter retardado durante
uns anitos o início da nossa colaboração.
Foi tudo sempre um longo caminho. “O que eu
andei para aqui chegar!”
É verdade, são outras das suas grandes virtudes, a
paciência e a teimosia. Para quem não souber, recu-
sei o papel do rapaz da Benilde, depois interpretado
pelo Jorge Rolla, porque julgava prioritário em 1974
trabalhar para a revolução portuguesa no espaço
que o 25 de Abril tinha aberto. Um filme católico
naquele momento parecia-me que não podia passar
à frente. Pois hoje aqui declaro que me arrependi,
mas que muito aprendi por ter tido a coragem de
cometer tão evidente erro. Muito mais generosa era
a proposta do que a minha leviana recusa. E muito
mais paciente e teimoso o proponente. Mas que são
paciência e teimosia, senão armas de luta contra o
tempo. Poucos anos depois, e depois de outra nega
minha, estava a convidar-me para um desafio ainda
mais difícil, o Rodrigue de Le Soulier de satin, horas
de versos difíceis em francês.
Aprendi a mesma lição muito mais tarde, aquando
da visita que o Papa Bento XVI fez a Portugal e se
inventou um encontro dos intelectuais com o Papa no
Centro Cultural de Belém. Estando convidados tanto
o Manoel como eu, eu decidi não ir. Mas depois de ver
o acontecimento transmitido pela televisão, escrevi
uma carta ao Manoel a contar-lhe as razões da minha
ausência. E reparei depois como a mise en scène era
igual à da audiência do Papa ao Vieira, no Palavra e
Utopia (2000). Era a repetição exacta com outros
actores, a começar pelo Papa Bento substituído pelo
papa João Bénard da Costa e o próprio Manoel no
lugar do Vieira e no lugar do religioso que acompanhava o papa, o hoje Cardeal Tolentino de Mendonça.
A sua resposta à minha carta foi mais ou menos
isto: “Não tenha pena de não ter ido... nada se perde
tudo se aproveita. Eu com isso recebi uma lindíssima
carta que guardarei.”
Hoje eu já teria aceite o convite, e subscreveria, se
fosse capaz, cada uma das palavras do grande Papa
Francisco, tal como acabo por concordar com quase
tudo o que o Manoel foi pensando, com cada novo
tema que se propôs, para cada novo filme e acabou
sempre por ficar expresso como convite a uma
tomada de posição dos outros, uma provocação, um
desafio a uma reflexão sobre o assunto, por acaso
ou não, quase como o papa Francisco tem vindo a
fazer por todo o mundo com as suas intervenções.
O que aprendi com Manoel de Oliveira, aliás, tem tudo
a ver com uma responsabilidade pública. Engraçado
como no filme que hoje vai aqui ser projectado, numa
sala de projecção e não em vídeo, se volta tanto ao
processo de pôr os actores a falar para a câmara que
tanto pratiquei obedientemente no Soulier de satin.
Mandar os actores falar para a câmara, devia-se,
segundo Oliveira, à vontade de ver os espectadores a
sentir que os actores do filme estavam a dirigir-lhes
a palavra. E nunca, como no Palavra e Utopia, foi tão
claro como Manoel de Oliveira levou a sério a sua
paixão pela arte cinematográfica como forma de ser
político e, no entanto, a preservou sempre maravilhosamente lúdica, ou não se tratasse de arte. Levou a
sério como quem, num gesto que a sua personalidade
tem o condão de conseguir, juntar dois contrários, a
vontade de intervir no seu tempo politicamente com
os filmes que fez tantas vezes em contra-corrente, ou
explicitamente, e de ao mesmo tempo expor a luta
consigo próprio, mostrar as suas dúvidas e contradições, mostrar exemplarmente que só quem quiser
ter a intenção de trabalhar, de permanecer tão fiel a
si próprio e leal para com os outros, que para ele ser
artista é gostar de expor perante os outros as diferentes formas que com seu cinema criou para abordar
de muitas maneiras o conhecimento do ser humano.
Desde o princípio do Acto da Primavera até ao seu
último filme, tudo é uma investigação sobre aquilo
que devíamos poder ver e talvez a câmara veja.
Tudo isto a propósito do filme Palavra e Utopia, filme
para o qual me preparei com cuidado, sacrificando um
mês de férias para estudar e aprender de cor todos
os textos do Padre Vieira que digo no filme, mesmo os
que digo em voz off. O Manoel assim mo tinha pedido,
porque, dizia ele – e tinha razão –, eu quando digo um
texto memorizado não o digo da mesma maneira que
se o estiver a ler. Tinha-me dito o produtor: “Desta
vez é um filme para ti. (Como se Manoel de Oliveira
fizesse filmes por razões tão privadas...) não há quase
figuras femininas e tu tens o papel de protagonista
absoluto.” Não foi isso que veio a acontecer, e é natural – não foi para me mostrar que eu quis ser actor –,mas bastante pena tive de não fazer todo o papel do
Vieira e não entendia a razão da mudança. Só que, ou
o quis o acaso, ou o cozinhou o próprio produtor, mas
foi com uma justificação interessante que a alteração
me passou a ser apresentada. O Manoel tinha tido
a ideia de que o papel fosse dividido por 3 actores
diferentes, como se a vida de Vieira se pudesse vir a
dividir em 3 partes, ou 3 atitudes, e correspondesse
cada uma delas a um actor diferente. Tive e tenho
ainda inveja do meu colega brasileiro. Daria tudo para
ter representado a morte do Vieira. E, para mim, as
palavras do Vieira aprendi-as como se fossem de
facto palavras sagradas, ou como um documento,
mas com o conteúdo que lhe é intrínseco. E o problema para o Lima Duarte não se punha. Interessava-lhe
pouco o assunto dos textos porque “Pregador é pregador, não tem muito mais.” Mas ultrapassei as várias
provas que me foram pedidas. A primeira: acreditar
que teria sido uma ideia do Manoel que tinha mudado
a ideia inicial, enriquecendo-a com a divisão do papel
em 3 e não uma forma de conseguir mais facilmente
dinheiro brasileiro na produção. Ultrapassei a dificuldade, distanciando-me do veneno que o dinheiro
sempre arrasta consigo, como por norma tento fazer,
e acreditando que a mim o que me interessava era
que reconhecia na distribuição um enriquecimento
para o filme. E reprimi com a alegria de um mártir a
minha ofendida vaidade, quando, no fim da estreia
do filme em Portugal, que tinha acabado de ver pela
primeira vez, sentado no Tivoli ao lado do Senhor
Presidente da Câmara de Lisboa, o Dr. João Soares,
ele me dirigiu esta singular felicitação: “Eh pá, o
brasileiro é porreiro”.
Mas em contrapartida, outro incidente com a presença no elenco do actor brasileiro me veio submeter
a nova prova. Alguém se lembrou (o próprio padre
João Marques, amigo do Manoel e de José Régio,
conselheiro literário do filme?) que o Português falado
em Lisboa no século XVII estaria, em termos fonéticos, mais próximo do brasileiro que do português
moderno, e que a presença de um actor brasileiro iria
enriquecer também o filme. O Manoel pediu a Lima
Duarte que nos ajudasse, ao Ricardo e a mim, e que
tentássemos ter a mesma maneira de pronunciar o
português de Vieira. Foi de facto a custo que vi o meu
colega e excelente actor dedicar-se um mínimo a,
generosamente, nos ajudar. Mas de tudo Manoel faz filme porque a sua atitude como criador sempre foi
modelar, foi da mais feroz austeridade e intransigência
a qualquer razão menos nobre para filmar, nada interessa a não ser uma busca da verdade na fotografia
do real. Mas verdade, verdade, só Deus, como disse
Santo Agostinho, e é verdade. Verdade? Verdade
ou é tudo ou nada, porque só Deus diz: ego sum qui
sum. Ele, Manoel, filmará o que tem à sua frente e é
na luta para o compreender que se desenvolvem os
seus filmes, na confiança ao que se julga como mera
aparência: a verdade da criação de Deus. E, eis senão
quando, até a artificialíssima transformação da cara
do Ricardo na minha e a minha na do Lima Duarte,
contribuem para que fique claro que o filme não
pretende ser uma reconstituição histórica da vida do
Padre António Vieira, mas um objecto artístico, uma
obra, um monumento e não um documento.
É dos mais áridos e radicais filmes de Oliveira. O contrário do que fez Rossellini com La Prise de pouvoir
par Louis XIV (A Tomada do Poder por Luís XIV, 1966),
um filme que uma opinião apressada diria parecido
com este de Oliveira e, ainda por cima, sobre a mesma
época. Mas como é interessante que perante a História
os dois realizadores, ambos católicos, se coloquem
em campos opostos! Rossellini, em princípio, coloca-se
de fora, ou quer fazê-lo como se fizesse reportagem,
enfim, um pouco mais do que isso, claro. Rossellini chegou a convencer-nos que na Viaggio in Italia (Viagem
em Itália, 1954) tinha filmado um milagre, enquanto
Oliveira precisou de toda a sua longa vida para que a
sua alma o deixasse repousar na paz. Sempre adoptando a dúvida como maneira de viver. E teve, graças a
Deus, mais vida do que a que o seu inimigo lhe previa.
Depois de ganhar décadas na luta contra o Tempo,
conseguiu ainda estar a lutar com a morte um bom
bocado, agarrado à culpa profunda do ser humano
como tábua de salvação, acabando por assumir a
culpa de cabeça levantada, tornando-se obreiro da
verdade, mais que em testemunha. Oliveira subjectiva
todo o filme. Mas o Vieira também não é ele. E como
se ainda não tivéssemos percebido, chega no fim do
filme a tempo de ver o que nunca ninguém verá de si
próprio, a imagem da palavra sem o Espírito, o corpo
morto de outro português, que sabia falar. Imagem em
que orgulhosamente se ousou mostrar e em que ele
próprio se inclui, como naqueles quadros antigos se incluía o patrocinador e a mulher. Aqui, disfarçadamente,
o autor retratou-se no grupo que estava presente, mas
mais como no “Julgamento Final” que Miguel Ângelo
fez no tecto da Sistina: no meio da humanidade se
reconhece a pele do artista. Manoel de Oliveira vem
de fora, ainda da vida, assistir para sua instrução, à
imagem ainda em movimento da morte de todos, nela
imaginando-se também participar. O recado que trazia
é que não imaginou que ainda fosse lido.
Oliveira não expõe, como Rossellini, do alto de uma
autoridade de autor que não encontra em si próprio,
porque não lhe interessa, acusa a humanidade de
ser má. Até ao fim me foi dizendo: “O Luís já sei que
não concorda, mas eu acho que o Homem descende
de Caim.” Acabando por assumir, o que primeiro se
aprende: o Pai Nosso, a Oração que Deus nos ensinou: Pai nosso, que estais no céu... livrai-nos do mal.
Palavra e Utopia é muito mais do que uma biografia do
Padre António Vieira. É a tentativa de devolver o Verbo
a Deus, o seu a seu dono, para encontrar a paz quando
chegasse ao mar. Esse mar sempre em movimento, e
escuro, que antes de morrer usou como paráfrase do
Espírito Universal, imagem que então tornou metáfora
para me explicar que talvez fosse esse o Milagre principal, o da Redenção: o Guadiana, o Tejo , o Mondego e
o Douro, tão diferentes, todos se fundindo ao desaguar
no mar, participando indistintamente e sem Tempo
na força do Movimento. Que vem substituir a pureza
da pomba branca, já imagem por ele desmontada do
Espírito Santo, quando põe a hipótese experimentada
na sua Divina Comédia (1991), de a pombinha branca
lançar um cocó na testa do Anti-Cristo, mas nunca no
vestido da Maria João Pires... É que tão forte personalidade não deixou de pensar até que o Tempo o desse
por vencido e oxalá no céu se ouvisse o coro das almas
a cantar o “délivrance aux âmes captives” do fim do
Soulier. Ainda me confundiu quando, antes de filmar-mos aquela última curta metragem tão terrível como a
Morte, me perguntou: “O que é que você acha: ponho
os ‘enforcados’?” Eu não entendi. Só mais tarde quando folheava o Amor de Perdição para estudar a leitura
das cartas de Simão e Teresa reconheci os enforcados
quando Camilo diz que os via no caminho para a Cadeia
da Relação. Palavra e Utopia é um filme em que, usando
fragmentos de textos do príncipe da língua portuguesa,
mais uma vez filma para perceber se esses sons do português participam ou não do Verbo que, no Evangelho
de João, se fez carne. Distribui pelo filme algumas
datas e acontecimentos da vida do pregador, mas não
é Vieira o tema. Os ambientes são escuros, como nas
pinturas filmadas na sacristia de S. Roque, cada décor é
filmado quase como se fosse uma gravura numa folha
de papel, os 3 Vieiras, até por causa dos púlpitos, são
bustos, não passam de manipansos, e quando os põe
em grande plano por algum segredo que não entendo,
talvez porque as cabeças ocupam pouco do espaço
que o enquadramento lhes permitia, que importa que
seja a minha ou a do Lima Duarte com aquela grotesca
expressividade que a prática da TV lhe ensinou, ou a do
jovem Ricardo Trêpa, neto do Manoel?
O filme chama-se Palavra e Utopia. O que o Manoel
quer filmar é o que não se vê, é a palavra em si, a sua
incapacidade de se fazer ouvir na nossa pátria; quem
ele interroga é a História de Portugal, de que as suas
sequências no filme são, não como registos documentais, mas sim desencantados e obscuros fragmentos
de sermões, reacções e fragmentos de um eu-sujeito
que pode transitar de corpo em corpo, mas é a voz de
Portugal, a nossa terra, condenada à mediocridade.
Tudo resiste a uma empatia do espectador com o
que vê. E o título é Palavra e Utopia. Hoje é na zona
da utopia que penso que Oliveira se coloca, porque
a julga intrínseca à posição de artista. Seja o Quinto
Império, ou seja outra a forma que tiver, o que se
expõe é a eterna tentativa da oposição da sociedade
à inteligência do Espírito, é deixarmos sempre que
a falta de fé sempre deixe dissolver-se em sonho
o que começou por ser desejo, por ser “utopia”, e
nunca deixar à esperança um lugar.
Noutros tempos como nos nossos dias. Porque há o
Tempo que tudo transforma. A recorrência em todos
os últimos filmes da imagem escura do mar e a coincidência da imagem com o lugar de fusão de todos
os espíritos arrasta consigo aquilo que até ao último
momento me afirmou estar em desacordo comigo:
para mim todos somos filhos de Adão. Para ele somos
todos filhos de Caim. Mas, seja como for, Manoel, há o
Espírito Santo, que nunca lutou com o Tempo. Nem tem
a violenta melancolia do som das suas imagens de Mar.
Luís Miguel Cintra
Apresentação de Palavra e Utopia, de Manoel de
Oliveira,
na Casa do Cinema Manoel de Oliveira,
Fundação de Serralves, no dia 16 de fevereiro de 2020.
21 de julho de 2021
O ESPELHO DO TEMPO
Com O Quinto Império: Ontem como Hoje, o arco traçado, na obra de Manoel de Oliveira, entre NON ou a Vã Glória de Mandar (1990) e Palavra e Utopia (2000) ganha um vértice inesperado, dando forma a uma nova zona capitular onde está em jogo a História de Portugal, algumas das suas principais figuras e alguns dos seus mais trágicos momentos. Tendo por base a peça de José Régio – El-Rei D. Sebastião –, O Quinto Império tem por centro dramático os dias que antecederam a resolução de D. Sebastião em empreender a jornada de AlcácerQuibir. E se é certo que o filme nos dá muito sobre o conjunto de condições mentais, históricas e dramáticas que empurraram Rei e Reino para a perdição, a verdade é que o programa de Manoel de Oliveira é bem mais vasto, configurando uma reflexão profunda sobre as cicatrizes que a história deixa num País, através do Tempo, seu único e poderoso agente.
Ontem como hoje; assim diz o subtítulo de O Quinto Império e di-lo bem. Porque a grande operação conceptual do filme passa por esse esforço em colocar a figura de D. Sebastião na cena em que, com toda a probabilidade, ela própria se pensou, isto é, fora das circunstâncias efectivas da história, da conjuntura palaciana e do pragmatismo do governo. Ontem, porque é do tempo passado que o Rei se alimenta (a peregrinação pelos túmulos dos grandes reis com que o filme abre; a manipulação fetichista do espadão de Afonso Henriques); hoje, porque é neste aqui e neste agora que Oliveira filma, porque é em nome deste hoje que o filme se faz. E que dizer, a este respeito, da utilização de Ricardo Trepa – actor que é neto de Manoel de Oliveira – , na personagem de D. Sebastião, assumindo-se como verdadeiro alter-ego – auto-retrato – do próprio realizador, lembrando por vezes mais o Manoel de Oliveira que vimos em A Canção de Lisboa (1933) do que o próprio Rei, cujo retrato Oliveira filma, propositadamente, para nos fazer lembrar menos as semelhanças do que as diferenças? Em certo sentido, O Quinto Império pode até ser considerado um “filme sebastianista” (como o foram os sermões de Vieira ou a poesia de Pessoa), pela simples razão de nos tornar tangível o incompreensível, de nos fazer entender a razão fora das razões, de nos fazer perceber porque, apesar desse tudo que é imenso, D. Sebastião nos é uma figura sumamente admirável, talvez por ter personificado, como ninguém, a Utopia e por ter dado a um país desgraçado um modo de se pensar como coisa maior do que si próprio (bigger than life, literalmente).
Já se terá percebido quão retorcidos são os caminhos deste O Quinto Império, como tão certeiramente acompanham as voltas e reviravoltas das escadarias maneiristas do Convento de Cristo e a grelha crepuscular da janela da sala do trono, em torno da qual quase todo o filme se passa. Porque em O Quinto Império há o respeito escrupuloso pela palavra e personagens da peça de José Régio, mas há sobre esse respeito “teatral” – que o filme assume – um trabalho essencial da luz, da penumbra e da planificação, a agitação desequilibrante do cinema, que põe toda essa matéria a fervilhar no “hoje” que o título designa e que é para onde o filme transporta o mito, tornando-o, através do cinema e da perenidade dos seus materiais, coisa realmente fantasmática e terrivelmente Imortal.
João Mário Grilo
(in Visão, 3 de fevereiro de 2005).
Escrito há já dez anos, este texto e o filme que ele, humildemente, convoca enfrentam hoje, solidariamente, a (sempre dura) prova do tempo. E nesse desiderato, há-de dizer-se que não só o Tempo – e a parte da nossa história que dele depende – tem sido Documento de trabalho do filme O Quinto Império: Ontem como Hoje (2004), depositado na Casa do Cinema Manoel de Oliveira — Fundação de Serralves. especialmente benéfico para o cinema de Oliveira, como este filme, particular e “acentuado” como poucos mais, tão bem mostra como, olhando aparentemente “para trás”, os filmes de Manoel de Oliveira são tão extraordinárias maneiras/máquinas de nos pôr a olhar – profeticamente – “para a frente”. Filme sobre o poder e os seus por vezes “delirantes” imaginários, O Quinto Império: Ontem como Hoje devia ser (hoje e sempre) um filme de visão obrigatória. Por ele – pelo seu Rei e pelo modo como no seu rosto e na sua inquietação se espelham o – também nosso – porvir – perpassa quase tudo o que é preciso saber sobre as andanças deste país: como ele foi, como ele é, como não pode (fatalmente, tragicamente) vir a ser. Ontem como hoje, hoje como amanhã. E o cinema – mas também o teatro e a poesia – (quase) sempre.
João Mário Grilo
Dezembro de 2015
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