2 de dezembro de 2012



HISTÓRIAS DE FANTASMAS
 
Descobri No Quarto da Vanda quase por acaso, no Festival Internacional Nouveau Cinéma Nouveaux Médias de Montreal, em Outubro de 2001. Estava a beber um café no átrio do cinema Ex-Centris e reparei que o filme iria ser exibido numa sala a poucos metros dali. Não tinha dado por ele no programa. Fazia parte de uma programação especial sobre cinema português, e eu desconfio sempre das secções de cinematografias nacionais nos festivais. Não se limitarão a proporcionar uma montra para filmes que não são suficientemente bons para a secção principal? Mas não havia mais nada para ver àquela hora, e eu não tinha mais nada para fazer. O filme já tinha começado, mas eu podia ver alguns minutos e a seguir apanhar o filme que tinha planeado ver mais tarde. Perdi o outro filme, fosse lá qual fosse (já não me consigo lembrar). Fiquei quase imediatamente fascinado por No Quarto da Vanda. Tive a sensação de estar a ver o futuro do cinema. Foi o primeiro filme rodado em vídeo digital que não me fez desejar que tivesse sido filmado em película. Na altura, não sabia que Costa tinha acumulado 140 horas de imagens e sons, das quais pôs de lado estas três horas, mas era bastante evidente que tinha passado muito tempo com as pessoas do filme.

No Quarto da Vanda é uma obra paciente. Antigamente, este género de paciência era possível para os realizadores de documentários que trabalhavam com câmaras de 16mm e deu origem a grandes filmes. Penso imediatamente em An American Family (1973), de Alan e Susan Raymond, em Seventeen (1983) de Jeff Kreines e Joel DeMott, e nos filmes de Sanrizuka de Ogawa Shinsuke, que documentam a resistência camponesa à construção do aeroporto de Narita, nos arrabaldes de Tóquio. Mas nessa altura a película era mais barata. Agora esta paciência só é possível para quem trabalhe com câmaras de vídeo.

No Quarto da Vanda é também uma obra íntima, um drama de câmara, como o título anuncia. Tomei-o como um documentário, mas um documentário de uma franqueza sem precedentes, o género de filme que Kieslowski afirmou ser impossível porque “há esferas da intimidade humana onde não se pode entrar com uma câmara”. Costa tinha conseguido entrar nessas esferas, entre imigrantes pobres que só conseguem arranjar trabalho temporário e irregular e que têm de lutar para criar um espaço próprio num bairro (as Fontainhas, em Lisboa) que vemos a ser demolido à volta deles. Pertencem àquilo a que alguns tecnocratas privilegiados e os seus peões nos EUA chamam “the underclass”, os indigentes.

É assim que vemos Vanda Duarte e os amigos a fumarem heroína, a injectarem-se e a dizerem parvoíces. Mas também há momentos de uma ternura espantosa em que eles parecem ainda mais indefesos, momentos que fazem lembrar os encontros mais misteriosos dos melhores filmes de ficção. Por exemplo (um exemplo privilegiado na minha memória), num dos planos-sequência mais simples e brilhantes do filme, Vanda e o seu amigo Pedro estão sentados à beira da cama dela, a falar da morte de Geny, uma amiga. Ela dá-lhe um medicamento qualquer, ele dá-lhe flores. Há ali solidariedade e até amor, palpáveis. Supõe-se que Costa só poderia ter registado estes momentos com câmaras leves e discretas. Mas, é claro, a intimidade do filme não é simplesmente uma questão de técnica. Houve de certeza um respeito e uma amizade mútuos e próximos entre Costa e as pessoas que filmou.

Jean-Louis Comolli e Gilles Deleuze afirmaram que muitos dos documentários mais significativos dos últimos quarenta anos têm sido colaborações entre o realizador e as pessoas que filma, em que cada um passa para o lado do outro. As pessoas que aparecem no filme descobrem-se a si próprias ao criar histórias, diálogos, narrativas, e o realizador ou realizadora reinventa-se através deste encontro. O lema deste cinema é o slogan de Rimbaud “Je est un autre” (“Eu é um outro”), uma frase que Costa também citou, para descrever Chaplin. É um argumento sedutor, mas eu nunca achei esses exemplos totalmente convincentes. Sempre me pareceu que havia mais poder ou, pelo menos, mais mestria do lado do realizador. Mas aqui estava, finalmente, um filme que de facto se enquadrava neste conceito teórico, uma colaboração onde havia uma verdadeira fraternidade e igualdade, porque nenhum dos lados abdicava da sua responsabilidade. Em todos os encontros registados por Costa há uma dignidade e formalidade que dão a ideia de Vanda e os seus amigos estarem a fazer o papel de si mesmos, e não a ser, simplesmente, eles mesmos. Costa enobrece-os com o grande cuidado que tem com as imagens, aplicando o mesmo esmero que um operador de câmara de Hollywood concederia a Gwyneth Paltrow ou Uma Thurman. Não é bem assim. Ao longo de No Quarto da Vandainserts de grandes planos tão belos como quaisquer outros no cinema.

Com este trabalho sobre a imagem, Costa reinventou o vídeo digital, descobri eu ao ver este filme. Fiquei a pensar que já não existe uma estética de cinema e uma estética de vídeo. Ainda pode haver filmes que acentuem essa especificidade das suas imagens, sobretudo na franja experimental das produções em 16mm, e vídeos que reivindiquem as qualidades especiais desse suporte, mas já não é preciso insistir nas diferenças. Só existem imagens em movimento; e podemos chamar “cinema” a tudo, se quisermos.

Costa fala em utilizar a câmara de vídeo de um modo que resiste às intenções dos seus fabricantes: “Querem que a mexa de um lado para o outro, e eu não a quero mexer…. As coisas usam-se para trabalhar. As câmaras, as câmaras pequenas, são muito úteis. São práticas, e não são caras, mas cuidado. É preciso trabalhá-las muito, e o trabalho é o contrário da facilidade. A facilidade é a primeira ideia. É a falta de resistência.” Portanto, ele não mexe de todo a câmara e ilumina cada enquadramento como John Alton o poderia ter feito nos anos 40. Pintar com a luz, chamou-lhe Alton, e tive a tentação de chamar às imagens de Costa pictóricas. O problema dessa formulação é que a semelhança com a pintura me parece mais uma coincidência do que intencional. As imagens parecem pictóricas porque a luz só existe para criar espaço.

Talvez seja mais pertinente invocar um filme de John Ford. Em No Quarto da Vanda, como em vários filmes de Ford, há muitas vezes uma porta ao fundo do enquadramento. As portas (e, mais frequentemente, as janelas) abrem-se e fecham-se às vezes, mas estão geralmente abertas. Os espaços são pequenos e estão a abarrotar, cheios de objectos que são alvo de um cuidado extremo e incessante (a limpeza é um motivo recorrente), mas talvez por o enquadramento ser tão rígido e estreito (muitas vezes com alguém que fala ou escuta, fora de campo), estão sempre abertos para um exterior que é ilimitado. As paredes estão “envelhecidas”, mas os quartos estão arrumados e são suficientemente bonitos para termos motivos para partilhar o pesar dos residentes por terem de sair dali (a demolição em curso do bairro nunca é explicada, mas já todos nós assistimos às perversidades da “limpeza dos bairros de lata” ou da “renovação urbana”).

A maior parte de No Quarto da Vanda passa-se em interiores, mas senti-me grato pelas frequentes cenas de exteriores, em geral breves, que dão outra impressão do bairro e da sua vida. As imagens isoladamente não nos mostram muito, mas em conjunto descrevem um pequeno mundo, uma comunidade feita de passagens estreitas e de pequenas praças, cada uma delas com um fogo aceso dia e noite. É um bairro que Jane Jacobs teria adorado. Na parte final do filme, começamos a reparar nos inquietantes x amarelos que marcam as casas para demolição imediata. Poucos minutos mais tarde, algumas delas são arrasadas por um bulldozer.

Há até quatro planos do mundo da natureza que mostram um campo de erva, mais alta do que os homens que o atravessam, um campo florido sob um céu enevoado e cinzento, e o vento a agitar as folhas num arvoredo denso.

Será que No Quarto da Vanda esteticiza a pobreza? Eu diria que sim, e sustentaria que é essa a sua maior virtude. O mundo é belo e uma imagem útil do mundo deve registar essa beleza. Os ricos e os pobres vivem debaixo do mesmo céu e o céu (só muito raramente entrevisto em No Quarto da Vanda) é mais belo do que a mais bela das paisagens naturais ou urbanas.

Agora há uma sequela, Juventude em Marcha. Deste filme já eu fui à procura. Antes de o ver, assistira já às três longas-metragens de Costa , tive um breve encontro com ele em Lisboa, vi No Quarto da Vanda outra vez em DVD e li descrições da estreia no Festival de Cinema de Cannes, em Maio de 2006. Consegui que Juventude em Marcha fosse projectado no Instituto das Artes da Califórnia, onde dou aulas, em Setembro de 2006, com Costa a apresentá-lo. Vi-o duas vezes numa cópia promocional em DVD, antes da projecção em 35mm.

Podemos chamar-lhe uma sequela, porque foi feito com as mesmas pessoas e o mesmo método. Costa acumulou 320 horas de filmagens em vídeo, com uma pequena câmara digital, ao longo de um período de quinze meses. Mais uma vez, as imagens são estáticas e majestosas, apesar de Costa apontar a sua câmara para cima e não para baixo, e de incluir algumas panorâmicas. Vanda, Nhurro e Paulo voltam a aparecer com destaque, apesar de Ventura, o protagonista, não ter aparecido em No Quarto da Vanda. Vanda está mais saudável e robusta - tem um marido recente e uma filha -, mas a sua irmã Zita morreu. A morte de Zita inspira uma das passagens mais comoventes do filme. Ventura e o seu amigo Xana estão a assistir a uma espécie de cortejo fúnebre que passa fora de campo. Xana comenta: “Mais um que se foi. […] O veneno do costume.” Ventura responde: “Não foi o veneno que ela tomou. Foi todo o veneno que tomaram por ela antes de ela nascer.”

A destruição do Bairro das Fontainhas, documentada em No Quarto da Vanda, está agora quase terminada, e practicamente todos os seus habitantes, incluindo Vanda, foram realojados em prédios novos, mas de má qualidade, com corredores amarelo-alaranjados e salas brancas que são cubos perfeitos. Os contrapicados de Costa fazem com que as molduras das portas pareçam os caixões verticais das famosas fotografias de Nadar do massacre dos membros da Comuna de Paris. Estas torres são versões despidas e puristas do Estilo Internacional, sem decoração nem imaginação, o género de coisa que Le Corbusier poderia ter concebido se não tivesse ido mais longe na prática do que na própria teoria.

Juventude em Marcha não pode ser confundido com um documentário. Começa num registo altamente dramático, melodramático, até. Vemos peças de mobília a serem atiradas pela janela de um segundo andar, para um pátio, sob um céu nocturno inquietantemente negro. Ventura depressa explicará esta imagem: a sua mulher Clotilde deixou-o, cortando-o num braço e destruindo a maior parte do recheio do lar comum. Ao longo do resto do filme, os episódios ficcionais alternam com sequências mais documentais, todas unificadas pela presença imponente de Ventura, que vagueia de encontro em encontro com os seus camaradas, chamando a muitos deles seus “filhos”, e de uma temporalidade para outra. Isto é, representa-se um período do passado de Ventura, mas estas sequências não são assinaladas como flashbacks. O facto de decorrerem no passado é apenas indicado por uma mudança no guarda-roupa e pelo aparecimento de uma ligadura enrolada à volta da cabeça de Ventura. Ao evocarem os primeiros tempos de um imigrante de Cabo Verde em Lisboa, afirmam insistentemente o carácter ficcional de Juventude em Marcha e permitem que Ventura dê corpo às aspirações e lutas da sua comunidade imigrante, as pessoas do Bairro das Fontainhas, tal como o Sargento Braxton Rutledge dá corpo às aspirações dos buffalo soldiers negros no filme de John Ford, de 1960, Sergeant Rutledge.

A ligação com os filmes de Ford não me ocorreu espontaneamente. Foi proposta por Costa, que disse sobre Juventude em Marcha: “Eu fiz um remake de Sergeant Rutledge.” Para Costa, No Quarto da Vanda e Juventude em Marcha são ambos continuações do seu esforço para recriar o cinema clássico de Hollywood por outros meios. O que, explicado por Costa, não é tão paradoxal ou perverso quanto parece, e depressa dei por mim a reparar em ecos de Tourneur e de Lang no seu segundo filme, Casa de Lava. Felizmente, a influência mais benéfica de Hawks e de Ford veio ao de cima em No Quarto da Vanda e Juventude em Marcha. Há uma generosidade no trabalho deles, um desejo de solidariedade e de comunidade que transcende a dramaturgia muitas vezes insípida e preguiçosa, e Costa conseguiu recriar esse impulso.

Depois de Costa o ter referido, fui rever Sergeant Rutledge, para perceber o que ele poderia ter ido lá buscar. Não é um filme típico de Ford. É um dos seus últimos westerns de “pequena forma”, para adoptar a expressão de Deleuze. A história é contada do avesso. É um filme de tribunal e, portanto, tudo é relatado em flashbacks. E não é um dos melhores filmes de Ford. Ford parece tão envergonhado com o drama de um soldado negro injustamente acusado de violar uma rapariga branca e de assassinar o seu pai que não consegue propriamente resolver-se a contá-lo. Há um excesso de momentos cómicos e uma longa exposição da fuga de Rutledge da cena do crime, mas a violação e o assassinato nunca são mostrados. No fim, o advogado de defesa tem de fazer um truque à Perry Mason para ilibar Rutledge. Porém, Ford deu a Woody Strode, que faz de Rutledge, o melhor papel da sua carreira, o de um “soldado de topo” cujas capacidades e coragem o tornam maior do que a vida, um modelo e uma lenda para os seus camaradas negros, e Strode aproveitou-o ao máximo. Ford fotografa-o de um modo especial, visto de baixo, num ângulo contrapicado, para reforçar o seu estatuto mítico. Nenhuma das outras personagens recebe este tratamento. Costa fotografa Ventura da mesma forma e creio que considera este homem humilde e despretensioso com o mesmo género de admiração que Ford sentiu por Rutledge. Os esforços que faz para preservar as suas raízes e a sua família, também apontados indirectamente, servem para encarnar os esforços da sua comunidade espoliada e marginalizada, e a sua nobreza discreta nega qualquer vestígio de miserabilismo que, para alguns espectadores, tinha manchado No Quarto da Vanda. Tal como Sergeant Rutledge, Juventude em Marcha é uma tentativa de tornar a “pequena forma” num épico.

A caracterização perspicaz que Joseph McBride faz de Rutledge em Searching for John Ford torna mais clara a ligação entre Ventura e Rutledge (bem como a convicção de Costa de que Juventude em Marcha, num certo sentido, repete Sergeant Rutledge): “Os últimos filmes de Ford lidam com personagens que, em grande medida, são capazes de ficar de fora da História ao mesmo tempo que a vivem. Rutledge é uma dessas personagens, um homem que se apercebe de que o sentido último da sua luta pessoal só se pode cumprir integralmente quando ele se tornar História.” Ainda mais do que Rutledge, Ventura exprime em cada gesto esta sensação de deslocamento e distância. Ele é um fantasma ou um anjo, que estende a mão aos vivos para os guiar pelo caminho.

Pedro Costa e eu acabámos por conversar muito sobre John Ford enquanto ele esteve na Califórnia. Falámos acerca de The Searchers (1956), um filme que ele admira mais do que eu. Depois de ter visto projectada a cópia em 35mm de Juventude em Marcha, comecei a identificar mais semelhanças com The Searchers do que com Sergeant Rutledge. Tal como Ethan Edwards, Ventura é um vagabundo, um “peregrino” à procura dos seus filhos perdidos. Quando o agente imobiliário, no apartamento dos prédios novos, lhe pergunta quantos filhos tem, Ventura reponde: “Ainda não sei.” Tal como Monument Valley representa todo o Sudoeste em The Searchers, as Fontainhas e os novos bairros de realojamento representam o mundo inteiro de Ventura em Juventude em Marcha. Então, disse-lhe eu: “É como em The Searchers – mas melhor. É The Searchers refeito a partir do ponto de vista de Mose.” Costa respondeu: “Então acha que Ventura é louco?” E eu respondi: “Não, mas eu não acho que Mose seja louco.” Só me ocorreu mais tarde que Mose é a única personagem sã em The Searchers e, por isso, limitei-me a dizer: “É como num filme de John Ford com Francis Ford como protagonista.” Ele acabou por aceitar este elogio. Afinal, o irmão mais velho de John Ford é o mais nobre e amável dos actores com quem ele costumava trabalhar e os melhores filmes de Ford são sempre aqueles em que Francis tem os melhores papéis. Poderia referir como exemplos My Darling Clementine (1946) ou The Sun Shines Bright (1953).

No entanto, na sua ficcionalidade pouco estruturada, Juventude em Marcha está mais perto de Andy Warhol do que de Ford. Costa confirmou-me o seu interesse por Warhol, que também defendia que estava a reinventar o cinema clássico de Hollywood por outros meios. Como Warhol, Costa aproveita as invenções dos seus actores, que também são seus amigos, e cria um esboço de ficção para os enquadrar, apesar de, ao contrário de Warhol, não confiar na improvisação e na espontaneidade da primeira take. Pelo contrário, filma muitas vezes vinte ou trinta takes da mesma cena, tal como as suas influências mais próximas, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Talvez tenha aprendido com eles que “o acidental só pode surgir no interior de um enquadramento rigorosamente construído”, segundo a formulação de Frédéric Bonnaud.

É claro que Warhol e Costa têm gostos diferentes no que diz respeito aos filmes de Hollywood. Tanto quanto eu saiba, nunca ninguém acusou Andy Warhol de ser um admirador de John Ford. Ventura e Vanda Duarte são portanto “super-estrelas” num outro género de filme. Se Edie Sedgwick era Lupe Velez, Mary Woronov era Maria Montez e Viva era Katharine Hepburn, então Ventura é Woody Strode (ou Hank Worden) e Vanda é Jane Darwell (pelo menos em Juventude em Marcha). Por outras palavras, não são realmente estrelas, são actores de composição. Assim, Juventude em Marcha é o filme de Hollywood com que todos sonhámos: o filme em que os actores de composição têm os papéis principais.

Para mim, Juventude em Marcha está para lá do elogio. Existe e pronto. É um filme com que todos os realizadores que vierem depois terão de se confrontar. Exige uma sequela, mas não tem de vir de Pedro Costa. É interessante o que Scott Foundas escreveu no LA Weekly: “O filme, depois de o ter visto, assombrou-me os sonhos durante uma semana e ainda lá estava ao acordar.” Juventude em Marcha não me assombrou os sonhos, mas interrompeu-me o sono. Depois de o ver, pensei nele obsessivamente durante dias e ainda o tenho na cabeça. Não quero com isto dar a entender que seja um filme perfeito, ou sequer um clássico, como alguns filmes de John Ford. Na realidade, é um filme intencionalmente imperfeito: Costa inclui uma take em que Ventura se engana numa fala. Não posso dizer isto com muita segurança, porque já o tinha visto duas vezes em casa antes da projecção, mas parece-me que o filme tem uma estrutura ténue e quase de certeza obscura, o que infelizmente cria dificuldades a alguns espectadores. Provavelmente, é preciso vê-lo pelo menos duas vezes para o conseguir perceber, e isso para mim não é uma virtude. Costa confidenciou-me que ele próprio ainda estava a descobrir o filme. Lento, um dos actores principais, teve de lhe explicar um aspecto importante do enredo depois da estreia em Cannes. Talvez possa ser um filme em construção também para nós, uma vez que o vemos e pensamos nele mais tarde. A sua estrutura permite-nos mudar a ordem das cenas e refazê-la mentalmente.

Por isso fico ansiosamente à espera da versão em DVD, apesar do muito que se perde. Vai permitir-me recordar alguns dos momentos mágicos que ainda não referi: Ventura a recitar, quase como um mantra, a carta inspirada em Robert Desnos, o hino da independência tocado num gira-discos portátil e mais tarde cantado por Ventura, a aparição das duas canetas na barraca ocupada por Ventura e Lento, os dois longos monólogos de Paulo. Não acho que constitua uma traição ao espírito do filme vê-los fora do seu contexto original.
 
Pela conversa e pelo encorajamento, os meus agradecimentos a Christine Chang, Pedro Costa, Valérie Massadian, Ricardo Matos Cabo e Mark Peranson
 
THOM ANDERSEN

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