Quase vinte anos passaram, desde que eu ouvi esta história (que não corresponde a nenhum dos momentos mais célebres de The Big Parade) e a minha própria visão do filme, em Maio de 1965, na histórica retrospectiva de cinema americano que o Dr. Félix Ribeiro organizou na salinha dos Restauradores, junto ao «Galo», dos tempos em que havia «Galo». Depois, revi-o várias vezes ou em pobres cópias de 16mm ou, um dia, na América, na luxuosa versão restaurada por Kevin Brownlow em 1988, com Carl Davis e uma orquestra imensa a acompanhá-lo. Influenciado ou não, continuo a pensar que o meu pai tinha tanta razão como o pai de Sacha Guitry. A guerra, para mim que nunca a fiz, é essa noite nas trincheiras ou é o dia que a precedeu, quando as tropas americanas avançam no Bosque de Belleau que, pouco a pouco, se transforma de tudo o que se associa à palavra bosque numas raras árvores calcinadas e dispersas. A sensação que me fica é muito semelhante à que me provoca o «Guerra, guerra» do I Acto da Aïda, pouco antes do «Ritorna vincitor»: atingir o cúmulo do realismo pelo cúmulo do artifício. Mas não foram as marchas e as canções («You’re in the Army, now») o que convenceu o «menino de sua mãe» que era Jimmy a oferecer-se como voluntário para uma guerra de que tomou conhecimento no barbeiro, com a cara tapada pela toalha?
«Silent music», foi o que Vidor disse ter procurado com este filme. E a prodigiosa combinação entre o que antigamente se chamava mise-en-scène, com efeitos de montagem que nada devem aos de Eisenstein, permite a orquestração global dos movimentos físicos de que as «paradas» são o apogeu, com função semelhantes à das «marchas» na ópera. Penso na primeira dessas paradas, quando o batalhão de Jimmy chega a França. A primeira fila do regimento avança para a câmara, em plano médio. Traveling para trás, e, entre centenas de homens, destacam-se apenas cinco ou seis, em plano americano. Depois, sem corte, segue-se a visão de outra fila de homens (sempre cinco ou seis rostos, em plano americano ou em grande plano), depois outra e outra. Sentimos tanto a presença invisível dos soldados perdidos na profundidade de campo, como a das cinco ou seis caras visíveis. Nenhum militar sai do plano, como numa desfilada tradicional, nem mesmo quando se afasta da câmara. O que vemos são indivíduos mas indivíduos inseridos num colectivo. É a guerra no mais abstracto e no mais concreto, no mais mítico e no mais dramático.
Volto onde o meu pai me deixou. «Slim», o homem que ensinou Jimmy a fumar e a trincar um bolo duro, morreu, sem sequer poder dizer adeus ao amigo. Desesperado, Jimmy prossegue a missão do outro. E cai numa trincheira alemã, onde, logo depois, cai também um soldado inimigo, provavelmente aquele que matou «Slim». Jimmy, possesso de ódio, tem-no à mercê. Encosta-lhe a baioneta à garganta. Mas a aflição do outro, o medo do outro, detêm-no e impedem o assassinato a sangue quente. Jimmy nem repara que o alemão está ferido, mortalmente ferido. Por gestos (neste filme de alemães e americanos, ou de franceses e americanos, ninguém se entende mas todos se percebem) o outro pede-lhe um cigarro (sempre os cigarros). O plano fica e fica (deve demorar, sem qualquer movimento, dois ou três minutos) sempre a enquadrar os dois em plano médio. Até que do cigarro na boca do alemão deixa de sair fumo e percebemos – e Jimmy percebe – que o soldado morreu. O plano dura ainda o suficiente para que a presença do cadáver nos braços de Jimmy seja quase obscena.
Foi uma cena n vezes copiada e, em certos casos (por exemplo em All Quiet on the Western Front de Lewis Milestone) com intuitos pacifistas que também se atribuíram – a meu ver erradamente – a King Vidor. Mas o que mais me surpreende nela não é a retórica do «inimigo feito ser humano». É a rima perfeita entre esse plano e outro, igualmente longuíssimo, lendariamente conhecido como a sequência do chewing gum, justamente uma das mais celebradas de The Big Parade.
Passa-se em Chantillon, onde as tropas americanas descansaram um pouco, entre Jimmy e Mélisande (Renée Adorée), o cerne do grande filme romântico que The Big Parade também é. De noite, à porta de casa de Mélisande, por quem Jimmy perdidamente se apaixonou, este, que não lhe consegue explicar quanto a ama, dá-lhe uma pastilha elástica. Enquanto chupa a dele e puxa os fios da boca, ela, que nunca viu tal coisa, engole-a. Debalde, tenta Jimmy ensiná-la. Quando lhe abre a boca, já não está lá nada. Só o espaço para os beijos, os primeiros beijos deles, a que a história da pastilha elástica serviu de prodigiosa introdução. Por alguma razão, a duração e fixidez desses planos (o do chewing gum e o da morte do alemão) são aproximáveis e inusitadíssimos para as convenções da época. Por alguma razão, ambos se centram na boca e na oralidade (a pastilha elástica, o cigarro). Por alguma razão, dois corpos os ocupam das duas vezes. Por alguma razão, a incomunicabilidade linguística é tão forte num como no outro plano. Qual razão? A que dá razão à radical mudança entre o Jimmy do início e o Jimmy final, a que explica a transfiguração do protagonista. Na sequência do chewing gum, Jimmy descobriu o sexo, coisa que sequer jamais pressentira com a fútil namorada americana do princípio do filme. Na sequência com o alemão, Jimmy descobriu a morte, para além da histeria que a morte do amigo lhe provocara. Esses dois momentos ficaram e ficaram e determinaram o «milagre» final, tão próximo dos «milagres» de Murnau ou Borzage. Refiro-me ao reencontro, no fim da guerra, de Jimmy e Mélisande, quando esta o vê, de muito longe, no alto da colina, e corre para ele como se sempre soubesse que ele ia chegar.
Jimmy perdeu uma perna na guerra. Para ele, a guerra acabou no dia em que voltou à cidadezinha de Mélisande e não a achou mais. Antes, muito antes, tinha tido lugar a famosa despedida da rapariga. As tropas americanas partem para a frente e Mélisande, sozinha nos bosques, só tarde se apercebe do que lhe vão levar, de quem lhe vão levar. Durante «séculos» (outra vez) procuram-se um ao outro na confusão do regimento que se vai e dos franceses que se ficam. Travelings infinitos acompanham a incessante corrida dela, ao longo da parada de carros militares. Até que, finalmente, Mélisande descobre Jimmy num camião que já está em movimento e Jimmy descobre Mélisande em movimento para o camião. Jimmy salta e o beijo deles também nunca mais acaba. Os colegas puxam-no, e Mélisande agarra-se à perna dele, agarra-se depois à corrente do carro, como se o fio que os une se não pudesse quebrar mais. Até que acaba por cair. De dentro da carripana, Jimmy atira-lhe tudo o que tem à mão. A última coisa é um sapato. E é a esse sapato que Mélisande fica agarrada, a chorar, ponto perdido na profundidade do campo aberta pela marcha do camião.
Metaforicamente, é nessa sequência que fica a perna de Jimmy, a perna sem a qual volta da guerra. No regresso à América, essa amputação domina a personagem e o reencontro dela com a mãe e a antiga namorada. Mas quando reencontra Mélisande, recupera, com a alma toda, o corpo todo. Renasce, ressuscitado.
Lembramo-nos então que, quando se conheceram, Jimmy tinha um barril enfiado na cabaça e só através de um buraquinho a viu em cache, a ela e à vaca dela. Divertida com a estranha visão daquele desajeitado soldado, Mélisande segue-o e surpreende os colegas dele, nus, a tomar um duche (o barril destinava-se a esse improvisado banho). Nenhuma vergonha dela, que continua a rir, toda a vergonha dos homens, assim surpreendidos. Em The Big Parade, os homens sem rosto levam muito tempo a destaparem-se e cabe às mulheres revelá-los. Como lhes cabe a elas (e muito haveria a dizer sobre o paralelo entre a mãe de Jimmy e Mélisande) tomar as iniciativas físicas e transformar os fios em laços.
Como sempre, em Vidor, a situação dramática (neste caso, a guerra) gera a situação lírica, que necessariamente inclui todos os elementos dramáticos, sem os quais, como disse Shelley, só se conseguem «bad lyrics and worse dramas». E The Big Parade, drama admirável e lírica incomparável, está para o cinema como a Ode to the West Wind está para a literatura. O milagre da transfiguração.
João Bénard da Costa
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