| acabado de rever na cópia restaurada lançada à tempos pela The Stone and the Plot, só me fortaleceu a convicção de que é um dos mais importantes filmes portugueses |
«A filmes como O Movimento das Coisas costuma aplicar-se a designação documentário. É 
despropositado, nesta “folha”, retomar a discussão acerca de tal designação e do que separa ou não 
separa, enquanto objecto fílmico, o documentário da ficção. Mas também não adianta iludir a questão 
classificativa e acrescentar lugares comuns do género dos que afirmam que toda a ficção é documento 
e todo o documento ficção. Porque O Movimento das Coisas se situa na região indefinida onde essas 
questões podem e devem ser postas sem as reduzir a chavões.  Para exemplificar apenas com filmes portugueses dos anos 70-80, pode ser grande a tentação de 
aproximar O Movimento das Coisas das obras de António Reis e Margarida Cordeiro, particularmente 
Trás-os-Montes e Ana. A meu ver, não há maior contra-senso. Não apenas por uma questão 
qualitativa (se muitos são os méritos de Manuela Serra, há uma enorme distância entre tais méritos e 
a grandeza atingida por António Reis e Margarida Cordeiro) mas sobretudo porque a raiz do filme que 
vamos ver, o seu imaginário e o seu fantástico, são de ordem completamente diferente. 
 Se comecei por uma comparação ingrata a Manuela Serra, não foi para poupar (mesmo relativamente) 
o seu filme, mas porque essa comparação tem sido exercida noutros textos sobre esta obra 
prejudicando a sua compreensão e o seu alcance. Atrás usei (e sublinhei) o adjectivo indefinida. Não foi 
por acaso. Ao rigor que preside aos regressos originais e originados de António Reis e Margarida 
Cordeiro, opõe-se em O Movimento das Coisas uma indefinição que lhe dá grande parte do seu 
interesse e o singulariza não só em relação à via única – e inimitável – desses cineastas, como o 
singulariza em relação a outras obras que podem, à primeira vista, ser aproximada desta, como são os 
casos dos belos filmes de António Campos ou de Philippe Constantini. 
 O Movimento das Coisas não é nem pretende ser uma gesta mítica, como não é nem pretende ser 
um documentário etnográfico ou antropológico. Reparar-se-á que a aldeia onde o filme se passa nunca 
é situada. Lanheses é um nome que só aparece no genérico final, nos agradecimentos da autora. 
Qualquer português identificará a aldeia, situando-a no norte de Portugal, mas a imprecisão geográfica, 
ou a indefinição, para usar um termo mais apropriado, existe desde o início do filme. Não sabemos bem 
onde estamos e nunca saberemos porque razão a realizadora nos levou até ali. Aparentemente, é uma 
aldeia igual a tantas outras, onde coexistem ritmos ancestrais com influências da emigração, aldeia 
onde predominam as mulheres, mas onde o trabalho destas não é exclusivo e as marcas de incipiente 
indústria se começam a fazer sentir. Mas, desde a belíssima abertura, com o rio, as névoas, os juncos 
e a câmara, muito lentamente, a descobrir-nos a povoação, sentimos que há uma relação física entre o 
olhar da câmara e o que esta nos dá a ver, como se aquele espaço, aparentemente indefinido, fosse 
também o único espaço possível para a corporização do imaginário contemplativo de Manuela Serra. 
 Essa mesma indefinição entre os diversos materiais é uma constante que atravessa o que o filme nos vai 
dando a ver, com grande demora e certeira beleza. O filme não nos conta uma história (a família que o 
atravessa jamais é portadora de qualquer ficção ou qualquer verdade); o filme não ilustra o quotidiano 
de uma aldeia (as imagens do quotidiano mais ofuscam a narração do que a esclarecem); o filme não 
está ao serviço de qualquer causa (em vão procuraremos ver nele leituras políticas, sociais ou 
etnográficas); o filme não segue o ritmo exterior temporal (género, um dia na vida de uma aldeia, ou o 
ciclo de estações). Podia continuar as enumerações, respondendo sempre pela negativa. E, no entanto, 
tudo isso lá está (história, quotidiano, causa, tempo, espaço) mas lá está no mesmo modo indefinido 
com que penetramos na comunidade. Numa linguagem literária, diríamos que a realizadora nunca 
utiliza artigos definidos, mas opta sempre pelos artigos indefinidos. Como estes “artigos” se articulam 
a uma matéria concreta (aparentemente despida de qualquer metafísica) a conjugação é estranhíssima 
e impõe, desde o início, uma singular perturbação. 
 O exemplo flagrante do que estou a dizer é o uso da montagem. Aparentemente, a inserção de 
sequências alheias ao que parece centrar a atenção da realizadora (pense-se nomeadamente, na 
sequência do cantar da família ou na sequência da igreja) não tem qualquer nexo, parecendo arbitrárias 
e retirando a duração necessária aos planos. Mas, com maior atenção, vamos descobrir que o uso de 
montagem da cineasta é precisamente uma interrogação à montagem, como se Manuela Serra, a cada 
momento, pusesse em causa essa própria noção, substituindo-a pela noção de colagem e reunindo num 
todo os diferentes materiais que vai dando a ver. 
 Essa utilização específica é particularmente impressionante naquele que é, para mim, o mais belo 
momento do filme. Refiro-me à sequência da igreja. O plano começa por nos mostrar a imagem de 
Cristo no altar-mor e, depois, vai lentamente descobrindo o padre, o altar e a assistência. Contra-plano 
e, do ponto de vista do altar, vemos a assistência e a porta da igreja aberta contra um céu nocturno e 
azulíssimo. Tudo nos leva a supor que estamos numa missa nocturna, até que, lentamente e após novas 
inserções das imagens “leit-motif” do campo, do rio e das névoas, voltamos à igreja, com uma luz 
diferente, como se muito tempo se tivesse passado e os personagens permanecessem fixos naquele 
ritual, tal arrancados a qualquer tempo preciso como a imagem de Cristo que a câmara nos dá em 
pormenor. Quando as pessoas saem da igreja é dia (crepúsculo? alvorada?) ficando apenas acesas as 
luzes da igreja, como se a noite se projectasse do interior desta para o exterior, num sinal contrário ao 
da iluminação inicial. 
 Exemplos deste género multiplicam-se no filme, sempre por fragmentos, como se não houvesse outro 
movimento senão aquele do que o título da obra nos fala. E esses fragmentos, e esses movimentos, são 
tanto visuais como sonoros. Ouvimos bocados de diálogos que, em si mesmos, parecem sempre 
esparsos e in-significantes. Mas o som com que ficamos é o da flauta da bela música de José Mário 
Branco, tão obsessivo e tão embalador como o plano visual do rio que passa junto à aldeia. 
 Tudo flui e tudo flui indefinidamente nesta obra que voga vagamente. Mas tudo flui em torno desses 
pontos de sustentação que são, paradoxalmente, os pontos de referência mais imateriais deste filme: a 
paisagem ritual e o som da flauta, que guiam do princípio ao fim no nosso olhar. 
 O Movimento das Coisas é, simultaneamente, um filme extremamente materialista e extremamente 
abstracto. Os dois termos não são inconciliáveis. Só que para o não serem é preciso uma determinável 
visão e é essa visão que dá coerência a este filme disperso e o transforma numa obra una, com 
surpreendente lógica e surpreendentes rimas. 
 Infelizmente, este filme, nunca estreado comercialmente, não teve sequência e Manuela Serra nunca 
mais voltou a filmar nestes vinte anos. Até nisso, este filme ficou indefinido e invisível. Entre uma 
longínqua passagem na Cinemateca há vinte anos, outra em 2004 e a sessão de hoje, quantas vezes 
mais terá sido exibido? Das múltiplas singularidades do cinema português, este filme e o seu destino são 
um dos casos mais singulares. 
JOÃO BÉNARD DA COSTA 
 Este texto foi escrito por João Bénard da Costa para acompanhar a exibição do filme em 1986, e revisto 
pela última vez pelo autor para uma sessão realizada em 2006.»
(retirado da folha da cinemateca portuguesa)

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