1 de outubro de 2023

 






Se Fritz Lang fez quatro filmes que podem ser abrangidos pelo subtítulo “filmes anti-nazis”, em dois deles (Ministry of Fear e Cloak and Dagger) o anti-nazismo é, um pouco, o macguffin de Hitchcock: o essencial dessas obras (essenciais) não está nessa etiqueta. Estará em Man Hunt? A questão não é pacifica, mas não é para ser abordada hoje.

E quanto a Hangmen Also Die? Aqui, o caso é francamente mais complexo, até pela própria génese da obra e do que nela pode ser atribuído a Lang, a Bertolt Brecht ou ao poeta e dramaturgo comunista John Wexley, o único a figurar no genérico como argumentista.

Lang disse que 90% do argumento do filme se devia a Brecht e citou expressamente certas passagens (o diálogo entre o Professor e o poeta antes da execução deste - “porque é que matam as pessoas de madrugada, e não ao crepúsculo” - a carta do Professor ao filho - “real freedom is fighting for freedom. And you must remember me - not because I’ve been your father, but because I died in this great fight” - ditada na cela a Mascha). Citou também - e talvez seja a marca mais distintiva do estilo de Brecht - a sequência em que o Professor explica à filha porque é que, na clandestinidade e na guerra, ninguém pode dizer nada a ninguém. “Se disseres a A, A pode dizer a B, B pode dizer a C e assim sucessivamente. E quando chegar a F e F disser a G, G quer dizer Gestapo”. “Mais ninguém neste mundo e, com certeza, nunca Wexley, podia ter escrito essa cena”, disse Lang.

Mas sabe-se que Brecht guardou amargas recordações desta experiência e considerou que as suas intenções tinham sido traídas por Lang. Para o essencial dessa questão remeto para o livro de Lotte Eisner sobre Fritz Lang mas saliento dois aspectos fundamentais. Brecht achava que Lang tinha elidido a participação operária na Resistência (os resistentes do filme são todos burgueses, como burguesas são as resistentes). Brecht achava que Lang estava mais interessado nas surpresas do que nas tensões e ficava furioso de cada vez que Lang lhe dizia que o público não ia aceitar isto e ia aceitar aquilo (para além de secundárias questões como a do título, que Brecht queria que fosse Trust the People ou Never Surrender).

A primeira questão é extremamente curiosa, porque de facto a resistência operária é o tema da primeira sequência do filme (a única em que Heydrich intervém). A cólera de Heydrich é contra os operários da Skoda (os panfletos com as tartarugas). Quando vemos pela primeira vez Svoboda, o assassino de Heydrich (médico que se faz passar por arquitecto), este vem disfarçado de operário e “desmascara-se” num plano rapidíssimo. Muito mais tarde, no filme, o nazi Gruber (o personagem mais profundamente maléfico e, curiosamente, despido dos sinais visíveis da imagética nazi - tem-se notado que a sua caracterização mais parece provir de M ou do Testament des Dr. Mabuse) prefere cerveja ao vinho escolhido pelos resistentes, notando-lhes ironicamente, que a cerveja é a bebida mais popular (só que é o vinho atirado por Svoboda para disfarçar a mancha de sangue que salva os resistentes, apagando um sinal comprometedor). Se o povo está ao lado da Resistência está-o como pano de fundo, surgindo como organização (admirável sequência tipicamente languiana em que todos se juntam para impedir Mascha de ir à Gestapo ou o coro de denúncias finais contra Czaka, o traidor) da qual emergem as grandes figuras liberais de Svoboda ou de Novotny (o discurso deste é o discurso liberal arquetípico, como arquetípicas são a sua família burguesa e as suas relações com a mulher e os filhos). O único acto de resistência anónima (outra sequência prodigiosa) é a explosão de palmas que se segue à notícia da morte de Heydrich, em mais um “filme dentro do filme” na obra de Lang.

Alguns comentadores têm notado que, ironicamente, a história parece dar razão a Lang contra Brecht: o assassinato de Heydrich foi planeado em Londres (pela resistência liberal no exílio) contra a resistência interior, liderada pelo P.C. checo. Mas, na altura, nem Brecht nem Lang o sabiam e não é isso que mais importa, para o caso. O que é extremamente relevante (neste filme em que as “armadilhas do destino” se viram contra as forças do mal) é que Lang, ao recusar uma visão classista tenha também recusado uma visão individual. Em Hangmen Also Die (ao contrário de Man Hunt), a luta não é - como muito bem observa Simsolo - “a representação da luta dum indivíduo, assassino por vingança pessoal, mas a dum acto revolucionário, político e ideológico que leva à cumplicidade activa duma cidade inteira contra os carrascos”.

E ao escolher essa óptica (descentrando a protagonização entre Donlevy e Brennan) Lang pôde trazer ao primeiro plano o conflito moral colocado pelo problema dos reféns: ecoado por Mascha e por outras figuras femininas (como pode um homem consentir na morte de dezenas de outros, sem se entregar; um tal homem - chega-se a dizer - é pior que os nazis) contrapondo a essa argumentação não apenas o discurso de Brennan, mas o acto (ou os actos) da população, ou seja reduzindo o problema às proporções de conflito lateral. Hangmen Also Die descentra, assim, a temática da culpa, e encena uma especularidade que só podia funcionar dentro dos próprios códigos de representação de Hollywood (sucessivas representações, disfarces, ocultações).

Não tenho muito mais espaço e, por isso, me limito a um dos múltiplos exemplos: o que faz Mascha perder a sua imagem mais cultivada (a de noiva fiel de Jan) pela de mulher fácil, facilmente caindo nos braços de Svoboda. Quando ambos encenam a sequência da cama, Mascha põe em causa não só a sua relação com Jan como essa imagem de “jeune fille rangée”. E ilude tudo e todos, menos Gruber (a genial descoberta da falsa marca de “batôn”), porque Gruber é o único que está para além de aparências morais. Duvida de encenações demasiado bem feitas, mas acaba por ser vítima de outra, em que todos trocam de papel (os médicos assassinando-o, e esse plano sublime - referência emblemática ao M - do chapéu a rolar). Uma tal inversão e representação de estatutos só podia funcionar, quando eles estão claramente demarcados como o estavam para Mascha.

Por outro lado, é capital, em termos de construção, que, “decapitado” o filme do seu personagem central (Heydrich) logo após a primeira sequência (Lang elide até o assassinato), a narrativa se fosse afunilando em progressivas substituições. Até dela emergir outro personagem central - Czaka - o traidor abjecto, vítima duma conspiração de mentiras, que saberemos (pela mensagem final) não ter sido crível sequer para os nazis. Mas quando se tratava de salvar uma face colectiva, aquela face particularmente repugnante e particularmente individual, serviu os desígnios de todos.

Lang refere que a censura americana lhe pôs as maiores objecções a esse desfecho (“Como se pode aprovar um filme que glorifica uma mentira?”) o que é mais uma vez altamente sintomático. Porque efectivamente se trata de inverter todos os valores morais, pela inversão que a guerra já significa: morrem centenas de reféns, mas não se soube nunca quem foi o assassino; denuncia-se quando o denunciado é um denunciador; que importam aparências de fidelidade, quando já se tem que ser infiel a todos os poderes recebidos?

Só era possível fazer funcionar essa inversão quando a versão fosse, inicialmente, a mais representativamente clara. Por isso o nazismo aqui não podia ser o monstro de mil cabeças. Tinha que ser Gruber - o seu rosto mais rasteiro - e Czaka. Contra eles, a Resistência não podia ser o povo ou o herói solitário. Mas o par Svoboda-Mascha que jamais funciona em termos duma relação de amor, mas sobre o amor.

E chega-se à questão das surpresas e tensões. Lang afirmou ter recusado deliberadamente o psicologismo, porque a psicologia não muda em nada o essencial da acção. E o mais surpreendente ao longo de todo o filme (e neste sentido ele acaba por ser fiel a Brecht) é que exactamente pelo efeito de surpresa seja possível seguir os pólos que o célebre escritor queria para Hangmen Also Die: o assassinato de Heydrich; a questão da rapariga, cujo pai é preso como refém; e o linchamento de Czaka.

Se repararmos bem, é nas ligações entre esses três episódios que a surpresa funciona: sequência do cinema (efeito muito mais forte que a visão da morte de Heydrich); determinação do comportamento de Mascha (o que ela viu e o pai lhe diz que não pôde ver, aprendizagem na visita à cadeia, descoberta do pouco que contam Jan e Svoboda enquanto homens); descoberta (fabulosa sequência da anedota) da duplicidade de Czaka e seu efectivo linchamento final (na medida em que pelos múltiplos falsos testemunhos e pelo assassinato de Gruber, o personagem perde provas de inocência).

Como o Professor ensina à filha textualmente (com o dicionário) naquela guerra no one is no one. Nem sequer ele (fabuloso Walter Brennan) cuja única importância advém de ser um elo da cadeia, o que explicitamente se refere à brechtiana canção final de Hanns Eisler: “Take hold of the invisible torch and pass it on” (...) “but never let them take you, brother”.

Neste, entre múltiplos outros sentidos, Hangmen Also Die sobrepõe à representação épica (brechtiana) a representação circular e, em última análise, romântica, típica de Fritz Lang. 


 JOÃO BÉNARD DA COSTA