1983, Sredi serykh kamney, Kira Muratova
Sredi serykh kamney, filme mutilado que fez com que Muratova o rejeitasse, coisa de 83 mas só lançada a 88, na altura creditado a Ivan Sidorov precisamente pela recusa de Muratova em assinar o seu nome, acção de protesto pela censura sofrida e consequente mutilação do material filmado, ainda assim é coisa preciosa, estilisticamente áspera e rudimentar na esteira dum Parajanov, duma Shepitko, Klimov ou Pasolini…
Entre as pedras cinzentas, que na sua crueza e asperidade encontra a poética necessária para adaptar o conto de Korolenko, é na verdade a procura das memórias de processos traumáticos na infância. Vive da nostalgia como quem vive do pão, mas foge da exposição ao sentimentalismo como o diabo foge da cruz. O ritmo que Muratova consegue imprimir ao filme é vertiginoso e, de certa forma, tipicamente soviético (ou daquela era). É, no entanto, a procura da abstração que fazem do filme coisa preciosa, a deambulação de Vasya entre o contraste social dos dois “mundos” explorados, na ânsia de colmatar o vazio deixado pela perda recente da mãe, traz ao filme não só essa abstração narrativa, como um conflito interior e emocional daquela criança.
O que me parece em Entre as pedras cinzentas é que Muratova procura estender um certo tumulto interior, não só de Vazia como de seu pai, ambos em processo de luto e de dor, ao caos frenético que se vive naquela casa, como se o exterior fosse uma extensão do interior daqueles dois seres em redescoberta interior e readaptação ao mundo que os rodeia. É talvez por isso que Vasya procura o oposto a que tem em casa, ainda que encontre outro caos idêntico, numa tentativa imaculada e cândida de encontrar o afecto que perdeu da mãe e o que lhe é negado pelo pai, imerso também ele na sua dor e no seu conflito interior. Não deixa, pois, de ser curioso, que seja na manifestação de afecto de Vasya para com Marusya, que a catarse de pai e filho seja desencadeada e culmine no final, como se Muratova nos quisesse dizer que a cura é o amor. Maravilhoso!